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'Carvão' arde em San Sebatián

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Por Rodrigo Fonseca
"CARVÃO", de Carolina Markowicz, representa o Brasil nos Horizontes Latinos de San Sebastián Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Após a projeção do febril thriller "Casa de Antiguidades" (2020) por San Sebastián, em plena pandemia, os Horizontes Latinos do festival espanhol passaram a esperar (e até cobrar) do Brasil investigações sobre a naturalização do absurdo e da intolerância. E é esse o princípio que nosso cinema deu à edição número 70 do evento ibérico na forma de "Carvão", por meio de um roteiro capaz de driblar causalidades, obviedades e certezas. É um filme sobre as formas mais inesperadas de traição e decepção, numa geografia distante dos centros urbanos, onde toda aliança arde no fogo do egoísmo, como o substantivo que lhe dá título. Substantivo que evoca um aforismo de Nietzsche: "Por que tão duro?", falou ao diamante, um dia, o carvão: "não somos, nós, afinal, parentes próximos?". É dessa parentela - entre a nulidade e a retidão, entre a indolência e a manipulação - que fala o possante longa de Carolina Marcowicz. Longa que arrancou risos da plateia do Kursaal (o centro nervoso do Festival de San Sebastián) na manhã deste sábado, a cada tirada abusada de Jean Costa, guri que vive o filho da protagonsta de "Carvão". A personagem principal é Irene, esculpida no cinzel da excelência por Maeve Jinkings (de "O Som Ao Redor" e "Açúcar"). Premiada mundo adentro a partir de Cannes com "O Órfão" (2018), Carolina Markowicz é um expoente numa geração de cineastas que racha os arquétipos da representação de identidade gêneros, capaz de trucidar os signos clássicos e modernos do masculino nesse seu novo longa. A presença de um ator do quilate de Rômulo Braga ("Elon Não Acredita Na Morte") é fundamental para espatifar conceitos da maculindade de um Brasil rural. Ele vive Jairo, o marido nada parceiro e nada ativo de Irene, pai de Jean. Dono de uma carvoaria, ele se desenha como o estandarte da inércia numa família que luta a duras penas contra a pobreza. Irene opera a 220 volts para manter a produção de carvão em alta, para cuidar do filho (driblando sua teimosia) e para cozinhar para fora. É num Brasil frio, encasacado, de cobertas grossas, onde ela vive. O tom cinza é valorizado na fotografia de quadros nevrálgicos de Pepe Mendes. E é nesse ambiente de sol reticente que ela abre suas portas para acolher um gringo, vivido pelo sempre enfurecido César Bordón (o político grosseiro do primeiro segmento de "Relatos Selvagens", o do restaurante). Não é um acolhimento generoso. É um acordo comercial. Irene aceita hospedar o estrangeiro (que adora desenhar com cocaína, apirando-a com um canudo improvisado com uma fotografia espiralizada) para ganhar um troco a mais. Um senhor troco, aliás, em cédulas de R$ 100. Mas essa hospedagem traz perigos para dentro de seu lar. Um perigo inaudito, que Carolina constrói de maneira sinuosa, em sua dramaturgia, ampliando o escopo do mundinho seco onde uma mulher aguerrida é desprezada e usada por homens de meias verdades. Mas não se trata de um figura submissa. Temos uma figura que reage, ainda que fora das convenções, espelhando em escolhas nada normatizadas a forma como a diretora que conta sua história se apropria das ferramentas do suspense. Tenso, "Carvão" se impõe ainda pela direção de arte detalhista de Marines Mencio e Natalia Krieger. A maneira nervosa como a câmera abalroa o rosto de Irene (uma paisagem indecifrável à força da atuação de Maeve) tonifica o clima de incerteza que guia toda a narrativa. Uma narrativa que se põe lado a lado de grandes filmes recentes da Pangeia latina, como "1976", de Manuela Martelli (Chile), e o encantador "Tengo Sueños Eléctricos", de Valentina Maurel (Costa Rica), ambos escalados para os Horizontes de Donostia (San Sebastián em euskera, a língua local). Os três podem sair premiados da Espanha. Em breve, "Carvão" terá sua primeira exibição no Brasil, na Mostra Competitiva da Première Brasil do Festival do Rio, que acontece entre 6 e 16 de outubro. Antes disso, o longa fez sua estreia internacional no Festival Internacional de Toronto, que termina no domingo, no Canadá.

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