Rodrigo Fonseca Ganhador do Urso de Ouro da Berlinale 2021, a comédia "Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental" arrumou uma casa nova pra si, para destilar toda a sua ironia, celebrando a força do cinema romeno: seu novo CEP é o streaming Reserva Imovision. Traduzido como "Bad Luck Banging or Loony Porn" pelo mundo afora, "Babardeala Cu Bucluc Sau Porno Balamuc" é um projeto idealizado e dirigido pelo cineasta Radu Jude. É de lá que tem brotado a mais sólida expressão de narrativas ficcionais realistas deste século, chamada de Primavera Romena e inaugurada há 17 anos, quando "A Morte do Senhor Lazarescu" (2005), de Cristi Puiu, lançou uma nova modalidade de realismo social, na qual investigações quase sempre debochadas (muitas delas de ritmo tenso) mostram as falências institucionais. Desde então, joias egressas dos arredores de Bucareste, como "Lua Azul" (ganhador da Concha de Ouro de 2021), de Alina Grigore, tornaram-se eventos audiovisuais. São os frutos dessa estética primaveril. E alguns deles estão no https://www.reservaimovision.com.br/, como "Instinto Materno", de Cãlin Peter Netzer, ganhador do Urso de Ouro de 2013. Falando de cultura do cancelamento numa combinação de expressões visuais (vinheta, esquete, clipe, documentário) no longa que ganhou o troféu mais cobiçado de Belim, Jude filma fiel ao procedimento básico da Primavera. Este supõe usar uma estética desdramatizada (poucas ações), em locações reais, filmadas com um olhar próximo do documentário, onde as tramas são sempre mote para que se aborde a decadência política (e moral) daquela nação a partir dos escombros sociais deixados como herança pelo Comunismo. E isso sempre é arejado por um humor dos mais ácidos. Desse projeto estético nasceram filmes de culto como "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias", vencedor da Palma de Ouro em 2007; "California Dreamin'", de Cristian Nemescu; "O Tesouro" (2015), de Corneliu Porumboiu; "Ana, Mon Amou" (2017), de Cãlin Peter Netzer; e "Sieranevada", do já citado Puiu. O filme de Jude é mais um (grande) exemplar desse cinema que exuma as cicatrizes nacionais para ficar para a posteridade no planisfério da imagem. "Quando Antonioni estourou, nos anos 1960, com "Blow Up", vindo já de outras experiências de sucesso, o cinema dividiu-se em dois hemisférios, que, vez por outro, travam conflito", disse Radu Jude ao Estadão e San Sebastián. "Há o cinema da imagem pura, que é o caso de um diretor como Robert Bresson, criador de um módulo de narrar muito particular. E há o caso de um tipo de cinema onde tudo pode virar linguagem na tela. É um ramo que encontrou em Jean-Luc Godard a figura mais idiossincrática, capaz de incorporar trechos de livros, caricaturas e até cartazes em sua narrativa semiótica. Eu tento ficar nessa segunda seara, a da semiologia, para ter um 'guarda-chuva' que me proteja das análises maior e usar os diferentes elementos que a vida me dá, sem uma preocupação de pureza.
Existe um parentesco que Jude estabelece com as prosopopeias animadas da Warner Bros., tipo "Looney Tunes" ou "Animaniacs". Há momentos em que só falta o Patolino aparecer, com uma bigorna Acme na cabeça, no meio de uma Romênia que é devassada, de alto a baixo, em sua hipocrisia. Num meio termo entre uma coletânea de sketches e um espetáculo de comédia stand-up, o longa é dividido em três atos e uma sucessão de epílogos, sempre conectado com a percepção de que o Estado corrompido daquele país é um manancial de absurdos. E rimos de nervoso com a semelhança entre a corrupção deles e a nossa.
Gargalha-se de nervoso mesmo quando a câmara está apenas a observar o vaivém das ruas, seguindo a sua protagonista, a professora Emi (Katia Pascariu). Ao segui-la, o realizador de "Aferim!" (2015) já incorpora as máscaras de proteção ao coronavírus entre as suas personagens, datando propositadamente a sua narrativa ao surto pandémico do presente. A partir da histeria que se vive hoje, entre confinamentos, a comédia de Jude acompanha, em três segmentos formalmente diferentes entre si, a história do ataque a Emi depois que uma gravação dela (transando com o marido) é espalhada pela internet. Essa perseguição revela que há algo de medieval em todos os lados que apostam na bipolarização de ideias nestes tempos de ódio generalizado.
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