
RODRIGO FONSECA Ao forçar, no sentido mais gentil possível do termo, uma interseção de saberes entre dois artistas multidisciplinares nonagenários - de um lado o cineasta e escritor iraniano Ebrahim Golestan; do outro, o realizador e artista visual suíço nascido em Paris Jean-Luc Godard -, a diretora Mitra Farahani, egressa de Teerã, deu à 72ª Berlinale, na ainda seção bebê Encounters, seu filme mais deslumbrante até agora: "À vendredi, Robinson". Numa alusão à literatura de Daniel Dafoe (1660-1731) e seu consagrado "Robson Crusoé" (1719), a cineasta pinta seus dois objetos de estudo como figuras insulares. Isolaram-se do mundo num insulamento lírico, a fim de criar sistemas semióticos e não narrativas. Durante uma série de sextas-feiras, eles trocam mensagens, numa correspondência que move este .doc poético que dispara como favorito de uma competição ainda neném (como dito acima), paralela à disputa pelo Urso de Ouro, criada em 2020, quando a gestão curatorial de Carlo Chatrian começou. Aliás, Godard - que ganhou o prêmio de melhor direção aqui, em 1960, com "Acossado", e conquistou o Urso dourado há 57 anos, com "Alphaville", em 1965 - tem um título a mais na seleção alemã de 2022. Ele entra ainda no cardápio Berlinale Classics com "Nossa Música" ("Notre Musique", 2004), que regressa em cópia nova. "As pessoas vivem a me perguntar sobre o que houve no mundo em 1968, mas eu ando bem ocupado a viver o agora. Fiz, sim, parte daquele tempo, quando não se aprendia cinema em escolas, mas sim vendo filmes... às vezes os filmes mais obscuros... e tentando extrair sentido deles, isolando cada imagem", afirmou o cineasta em Cannes, em 2018, ao ser premiado com uma Palma Honorária por "Imagem e Palavra" (2018).

Estima-se que ele vá voltar à Croisette este ano, ainda que virtualmente, com um longa novo, gestado ao longo da pandemia, em paralelo a uma live que fez. Em outubro de 2019, a "Cahiers du Cinéma" dedicou sua capa ao diretor suíço (nascido em Paris, em 1930) de carona na chegada de "Imagem e palavra" a um pequeno circuito francês e ao menu da Netflix. "Le livre d'image" - com cenas do clássico "Johnny Guitar" (1954), de Nicholas Ray, em seu explosivo miolo semiótico. A reportagem é fruto de um delicado trabalho dos críticos Stéphane Delorme Joachim Lepastier, que bateram um longo papo com o filósofo da cinemática. A dupla arranca dele reflexões sobre realizadores que merecem uma revisão (como Frank Borzage, de "Depois do casamento" e "Homens de Amanhã") e sobre atrizes capazes de desafiar paradigmas dos códigos de naturalismo (como Adèle Haenel). E fala muito, durante a conversa, sobre dogmas da produção digital. Há três anos, em Cannes, o homem por trás de "O desprezo" (1963) concedeu uma coletiva de imprensa virtual via Facetime. Ele recusou-se a sair do pequeno escritório onde trabalha, na Suíça, e conversou com a imprensa por Skype, abrindo reflexões sobre o onipresente imperialismo do cinema americano. Enfim, é o que ele sempre fez, desde "Acossado". "Falam por aí que o cinema acabou, mas teve um produtor que quis me bancar e há um festival como Cannes, e como Berlim, interessado em me exibir. Talvez a presença de um filme como 'Imagem e Palavra' em Cannes seja apenas ação publicitaria, pois eu não sei se tem lugar para ele, e para mim, nas salas de exibição. Mas, na minha idade, o que me interessa é falar do que eu observo nos processos sociais: palavras não são um sinônimo de linguagem, pois linguagem é um conjunto de procedimentos de como empregamos signos. O problema é que as pessoas articulam esses signos sem a coragem de fantasiar o que aconteceria se as convenções fossem usadas de outra maneira. Eu faço filmes porque ainda tenho coragem", disse o mais emblemático e polêmico representante da Nouvelle Vague.

Neste sábado, Berlim vai enfim conferir, em sessão de gala, seu longa mais esperado: "Avec Amour et Acharnement", de Claire Denis, que conta com trilha sonora de sua habitual colaboradora: a banda inglesa Tindersticks, cantando "Both Sides of the Blade". Grude dos bons, a canção é xará do título em inglês desse filmaço (o mais visceral de Berlim até aqui, de longo o mais convulsivo) que tem como ponto de partida o relacionamento amoroso de mais de dez anos entre a radialista Sara (Juliette Binoche) e o olheiro de craques Jean (Vincent Lindon). Quando François (Grégoire Colin), antiga paixão de Sara e melhor amigo de Jean, reaparece, sentimentos do passado ressurgem e ela começa a questionar a sua vida. "Não posso resumir essa narrativa a um triângulo amoroso, até pelo fato de eu não resumir filmes a tramas: ele é mais uma experiência sobre coisas que não acabaram e que retornam", disse a diretora ao Estadão. "Eu estava vivendo a pandemia, logo após o isolamento do primeiro lockdown, quando escrevi esse enredo e Isabelle e Lindon me ajudaram a convencer o nosso produtor de que era importante criarmos". A Berlinale prossegue até o dia 16, quando a competição será encerrada, aos olhos do júri presidido por M. Night Shymalan. Vai ter uma dose extra de eventos - de quatro dias - pro público local.