RODRIGO FONSECA Um dos filmes mais elegantes de narrativa clássica praticados pelo cinema brasileiro nesta década vai ter a ribalta da TV aberta nesta madrugada: às 4h (é tarde, mas vale segurar o sono) deste sábado, a Globo exibe "Através da Sombra". Que "Corujão" dos bons será esse. É sempre necessário e urgente reencontrar a estética de Walter Lima Jr. E, aqui, o veterano realizador do Cinema Novo, aclamado já em sua arrancada em longas-metragens, com "Menino de Engenho" (1965) flerta com o horror em sua dimensão mais metafísica, sem jump scares (o que é uma pena), mas com fartas doses de assombro para assegurar a proposição do gênero. Antigos espíritos do Mal transformam a moral decadente de uma fazenda de café de um Brasil em vias de Modernidade, em 1930, num terreiro de verdades incendiárias, de assombrações metafísicas e de viradas de roteiro que suspendem nosso fôlego no filme, que dá a Virginia Cavendish seu melhor trabalho nas telas. Bambas como Adriana Falcão, Nelson Caldas e Guilherme Vasconcelos trabalham com Lima Jr. nesta releitura da novela literária "A Volta do Parafuso" (1898), de Henry James (1843-1916). A adaptação para o écran recebeu menção honrosa no Rio Fantastik Film Festival por sua excelência no exercício do medo. O Fantaspoa deu a ele um troféu para Virginia e outro para seus roteiristas.
Responsável por um banho de descarrego audiovisual chamado "A Lira do Delírio" (1978) e pelo lúdico "A Ostra e o Vento" (1997), Lima Jr. arranca de Virginia uma atuação memorável ao narrar o mergulho de uma professora em um ambiente povoado por forças das trevas, no qual duas crianças são assombradas por entidades malignas. O que existe de mais precioso neste thriller sobrenatural - num momento histórico de namoro do cinema nacional com o terror e o suspense, na busca pela afirmação de filmes de gênero como um produto de mercado rentável - é o domínio preciso que Lima Jr. tem das bases narrativas do filão do pavor como cartilha cinematográfica. Isso se faz expressar (e entender) no clima de mistério que rege a interação dos personagens residentes naquela calunga em forma de lavoura com a "estrangeira", a educadora que vem para debelar quizilas, como uma heroína. Com ecos de "Sangue de Pantera" (1942), de Jacques Tourneur, a trama aqui segue os passos de Laura (Virginia, em um desempenho comovente) para entender a gênese das angústias da pequena Elisa (Mel Maia). Ela foi contratada para educar a garota. Mas logo no início da relação entre mestra e aluna entre as duas, brota uma dimensão detetivesca. Já em sua chegada, a educadora se sente impelida a investigar os segredos que todos parecem alimentar naquele casarão, para onde foi contratada por um homem que mexe com seus desejos, Afonso (Domingos Montagner, cuja morte foi uma perda irreparável pra arte brasileira).
Conforme Laura vai levantando a poeira instalada naquela fazenda, sobretudo a poeira de traumas familiares, o Mal - antes espectral e anônimo - começa a ganhar nomes e carne, ao mesmo tempo em que ela vai se conscientizando da evidência efetiva de forças do Além. Essa constatação desafia sua razão, mas convida o público a mergulhar numa ciranda de signos pouco comuns ao cinema brasileiro, conduzidas com elegância pela fotografia de Pedro Farkas. A direção de arte de Alice Carvalho e os figurinos de Valeria Stefani dão ao longa um perfume de Visconti, que amplia a reflexão sobre decadentismo do mundo opressor ali retratado. Nos créditos de produção, estão Gisela Camara, a própria Virginia, Mariana Paradiso, Maria Dulce Saldanha e Daniel van Hoogstraten.
p.s.: Tardiamente, mas carinhosamente, o P de Pop conferiu a versão dublada do "The Punisher" da Netflix e Reginaldo Primo dá um show como a voz brasileira de Frank Castle, o Justiceiro. Que excelência vocal singular. Que cuidado com os graves na voz de Jon Bernthal, capturando toda a potência trágica do ator americano. É um dos mais arrebatadores desempenhos de um dublador nacional na seara do streaming.