A partir da história real de um estupro, no século 16, Antonin Artaud baseou sua criação dramatúrgica de Marcelo Marcus Fonseca (no original, Les Cenci, escrita em 1935). Inédita até então no Brasil, a peça liga o jovem diretor Marcelo Fonseca à cáustica dramaturgia do ator, encenador e dramaturgo francês. "Há 16 anos admiro a obra de Artaud, mas sempre relutei em enfrentar o ´grande xamã do Ocidente´, como a ele se refere a ensaísta Susan Sontag", diz o diretor de 29 anos. Fonseca dirigiu O Balcão (Genet), Filosofia na Alcova (Marquês de Sade) e Baal - O Mito da Carne, de Brecht. No galpão da Funarte, onde a peça será apresentada, o público cerca o centro da representação. São três arquibancadas, dispostas em uma arena. "Beatriz Cenci é um texto ágil e cru, em que não se perde tempo com detalhes." A ação da tragédia escrita por Artaud transcorre entre os anos de 1595 e 1599. Após assassinar o pai, o conde italiano Francisco Cenci, vingando um estupro, Beatriz Cenci foi torturada e condenada pelo papa Clemente VIII à execução em praça pública. Tinha 22 anos. Apesar de sofrer torturas, negou-se a assumir sua culpa. "Aceito o crime, mas nego a culpa, a personagem diz ao inquisidor, recusando-se a assinar sua sentença", relata Fonseca. Ele acha Beatriz magnética. A atriz Carolina Gonzalez, mulher de Fonseca, vive a protagonista. "Beatriz rebela-se diante da opressão exercida pelo pai sobre a família, mas sua força nasce como um ato de sobrevivência. Assim ela o mata", afirma Fonseca. Ele ressalta que o estupro é a faísca do espetáculo, embora, como nas tragédias gregas, ocorra fora de cena. Mas no alto do palco foi construída a famosa roda da tortura, onde a atriz é pendurada. O cenário é formado por elementos de ex-votos como pedaços de membros, carrancas e quadros, formando nichos que conotam a idéia mais que de devoção, de opressão infligida pela Igreja aos fiéis. Fonseca revela-se um perito ao discorrer sobre as teorias do mestre francês. "Os estudos de Artaud o levaram a entender que o heroísmo residia no peito, o medo nos rins, a opressão nos pulmões. Aí a razão vira víscera", completa. A perspectiva de Artaud era a de um teatro que pudesse mudar o homem psicologicamente e não socialmente. O que para ele importava era a liberação das forças tenebrosas e latentes da alma do ator. Artaud trabalhou na vertente das inquietações dos teóricos simbolistas e surrealistas, levadas às últimas conseqüências. No primeiro escrito significativo de Artaud sobre teatro L´ Evolution du Décor ("A evolução do cenário"), ele enaltecia a importância do "espírito e não a letra do texto". O teatro deveria "voltar à vida", não à maneira dos naturalistas, mas num nível mais místico e metafísico. Ele queria que o teatro mostrasse à platéia "as angústias e perturbações de suas vidas reais". Para tanto, o espectador seria submetido a uma verdadeira operação que envolvia não apenas a mente, mas também os sentidos e a carne. Na década de 30, uma série de ensaios formou sua obra mais influente: O Teatro e Seu Duplo. Desde o começo de sua carreira como poeta, ele vivia obcecado pela idéia de que as palavras eram incapazes de capturar a vida interior. O teatro não deveria se subordinar ao texto, assim como o corpo não pode subordinar-se à mente. No teatro balinense, Artaud via uma solução para o problema da mediação das palavras no espetáculo, pois os signos utilizados belos dançarinos de Bali eram espirituais e não verbais. Em 1932, o encenador escolheu o termo "crueldade" para caracterizar um novo teatro, baseado no que ele acreditava ser sua principal função: revelar o âmago da treva da própria vida. Beatriz Cenci - Tragédia. De Antonin Artaud. Direção Marcelo Marcus Fonseca. Duração: 1h20. Sexta e sábado, às 21 horas; domingo, às 19 horas. R$ 15,00 (sexta) e R$ 20,00. Funarte Teatro Galpão Carlos Miranda. Alameda Nothmann, 1.058, em São Paulo, tel. (11) 3662-5177. De amanhã até 17/12.