Peça retrata relacionamento entre duas escritoras

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Por Agencia Estado
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As escritoras Ruth e Lisa são mulheres ambíguas - ambas têm bons argumentos, mas se relacionam na perigosa fronteira que separa ficção e realidade. O desafio de retratar essas mulheres e o enigma moral que elas enfrentam da maneira mais imparcial possível resultou em Estórias Roubadas, peça do dramaturgo americano Donald Margulies que reinicia nesta terça feira (25) sua temporada apulistana, agora no Teatro Cultura Artística, às terças e quartas-feiras - os fins de semana serão usados em viagens pelo interior de São Paulo. Mais que a tortuosa relação mentor-protegido, o autor discute a crise na ficção, que marca a produção cultural da atualidade. "Uma vez compartilhadas com outra pessoa, as confissões tornam-se públicas", comenta Margulies, em entrevista. É em torno dessa conclusão que está armada a trama de Estórias Roubadas. Ruth Steiner é uma escritora de contos bem-sucedida, professora universitária na Universidade de Nova York e uma mulher solteira e sem filhos, que vive sozinha. Ao conhecer Lisa Morrison, uma jovem inexperiente e talentosa que quer discutir seu trabalho de formatura, sua vida se transforma: aos poucos, a menina torna-se sua assistente, protegida, amiga, chegando a uma espécie de filha adotiva. "Ruth vê em Lisa, no início, a projeção daquela aluna brilhante e jovem, que tem tudo para continuar o caminho percorrido por Ruth até então", comenta a atriz Beatriz Segall, que interpreta a veterana escritora e divide o palco com Rita Elmôr. A relação, no entanto, caminha para uma inevitável "traição": Lisa consagra-se justamente com um livro em que utiliza fatos pessoais de sua mestra, narrados em tom de confissão. "Nesse momento, ela coloca em discussão até onde vão os direitos de uma pessoa sobre a vida íntima de alguém". A questão preocupou Margulies no momento da criação. O dramaturgo inspirou-se em um fato real. Em 1993, o laureado poeta inglês Steve Spender e o jovem escritor americano David Leavitt travaram uma batalha judicial. Leavitt apropriou-se de um acontecimento vivido por Spender durante a Guerra Civil Espanhola e relatado em sua autobiografia, para escrever o seu romance, While England Sleeps. A luta na Justiça na qual se enfrentaram o velho e o novo acabou resultando em uma sentença favorável ao veterano poeta inglês. Copyright - "Eu me perguntava se idéias podem ser registradas, como uma invenção", conta Margulies. "Sem encontrar uma resposta definitiva, preferi a situação em que uma jovem utiliza a idéia da escritora mais velha, o que é diferente quando uma pessoa mantém preso o assunto no pensamento, apenas para si". O escritor preocupou-se, na verdade, com a influência que cada pessoa tem sobre a outra, sobre como seres humanos tentam se relacionar, transmitir tradições e preencher a poderosa necessidade de uma família. "Creio que, por isso, a peça tornou-se sucesso em todo o mundo e não se limitou aos Estados Unidos". A relação conturbada divide o público que acompanha a montagem brasileira de Estórias Roubadas. "Enquanto os espectadores mais velhos se preocupam com valores tão eternos como ética e lealdade, acreditando que algumas coisas são intocáveis, os jovens aceitam mais facilmente a partilha pública de experiências", notou Beatriz Segall. A dualidade de opiniões convive com o escritor americano. Professor de dramaturgia na Universidade de Yale e escritor respeitado (no início do ano, ganhou o renomado Prêmio Pulitzer na categoria drama), Donald Margulies submete-se constantemente às relações "vampirescas", como gosta de definir, com seus alunos. "Não sou tão dogmático e narcisista como Ruth", apressa-se em enfatizar. E seus pupilos? Quantos têm sede de buscar fatos inspirados? "Jovens escritores estão freqüentemente apaixonados com o ato de escrever e buscam alternativas de criação nas experiências dos veteranos". Para o dramaturgo, na relação de um mestre com aluno, é comum que um veja a si mesmo no outro. O professor quer criar no discípulo uma mentalidade próxima da sua, com os mesmos conceitos, da mesma forma que o aluno quer utilizar o que está recebendo de maneira a aprofundar sua visão de vida. "Trata-se de uma relação simbiótica". Margulies busca com insistência participar do surgimento de uma nova geração de ficcionistas, capazes de apresentar novos caminhos para a literatura. "Fazemos as mesmas indagações sobre a crise da ficção, aqui na América", conta. "Também aqui, nos últimos dez anos, tornou-se comum a proliferação de biografias; toda geração carrega um pouco da experiência de sua antecessora, mas agora há uma tendência exagerada para confissões". Margulies acredita que a geração atual sofre muita influência da televisão e de seus questionamentos sobre personalidade e a posição do indivíduo na sociedade. "Por isso, os livros autobiográficos tornaram-se tão populares na América", diz. "Temos uma profusão de escritores que foram maltratados por padrastos maldosos e cujas mães sofreram com alcoolismo; mas são textos, na maioria dos casos, de pouca ou nenhuma qualidade". Confissões - Há algumas exceções, reconhece o escritor. "Gosto muito, por exemplo, de As Cinzas de Ângela (de Frank McCourt), um texto de não-ficção que é bem escrito - as vozes que permeiam o relato são de uma grandeza estupenda", elogia. "Trata-se de um livro escrito por um jornalista, o que reforça esse conceito de confissão bem elaborada". Donald Margulies não sonha em escrever algo que se assemelhe a uma "obra total", uma ficção que tenha a presunção de esgotar, em uma só penada, os impasses postos na mesa literária de seu tempo. Prefere apontar caminhos que vão além do domínio literário e chegam, tímidos, aos subúrbios da filosofia. Gosta de relacionar o mórbido fascínio que impregna sua obra à influência do poeta Delmore Schwartz, morto recentemente. A presença é constante, desde a referência, em Estórias Roubadas, de que Ruth teve um "affair" com Schwartz até os poemas que serviram de epígrafes para suas peças. "Sua vida trágica estimulou enormemente o lado negro do romantismo em mim", explica. "Schwartz é o espectro da geração perdida". A realização, pessoal e profissional, é o sinal para Margulies de que segue a trilha certa. Ainda incensado pelo Pulitzer conquistado pela peça Dinner with Friends (Jantar com Amigos), o dramaturgo cuida do primeiro tratamento de roteiro desse texto para o cinema, além de adaptar Um Homem por Inteiro, de Tom Wolfe, para a televisão, que a exibirá em duas partes. Tal atividade, porém, apresenta uma frieza profissional. "Não me empolgo, pois sei que posso ser facilmente trocado por outro autor; em Hollywood, eles devoram escritores no almoço", ironiza. "É no teatro em que realmente me sinto criador." Serviço - Estórias Roubadas. Drama. De Donald Margulies. Direção de Marcos Caruso. Duração: 2 horas (com 15 minutos de intervalo). Terça e quarta, às 20h30. R$ 40,00. Teatro Cultura Artística - Sala Rubens Sverner. Rua Nestor Pestana, 196, tel. 258-3616

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