A primeira vez que li ou ouvi a expressão “pintar um clima” foi no Pasquim. Desconfio até que, a exemplo de “curtir”, “barato”, “amarrar um bode” e tantas outras, lá tenha sido inventada.
Esse verbo versátil já pintara em minhas hipóteses de assunto para esta coluna, não apenas para explorar a evolução etimológica da 13.ª ou 14.ª acepção que lhe dão os dicionários, mas também tentar esclarecer a diferença, ainda mal distinguida, entre pedofilia e prevaricação. O segundo desses crimes o aldrabão que nos governa na certa cometeu.
Estava ainda em dúvida sobre o que escrever, quando pintaram aquelas agressões racistas ao Seu Jorge e ao humorista Eddy Junior. De pronto descartei a celeuma envolvendo o motoqueiro imbrochável e as meninas venezuelanas, levianamente tomadas como possíveis protegidas da Matilda do calipso de Harry Belafonte (uma sirigaita que depenava a poupança de um gringo e fugia para a Venezuela), e fui buscar algo mais sintonizado com a questão do racismo do que com as taras do presidente e as obsessões da Damares.
Acabei no insuspeito naturalista britânico Charles Darwin. Como é sabido, Darwin, com base em suas pesquisas sobre a origem das espécies, aproximou todos nós – pretos, brancos, pardos, amarelos, até evangélicos – do macaco. Não foi, porém, sob inspiração da teoria evolucionista que os patifes hostilizaram e xingaram Seu Jorge e Eddy Junior. Em 1832, Darwin passou quatro meses no Brasil. Encantou-se com a experiência de “ficar a sós no seio de uma floresta brasileira”, anotou no diário científico da viagem. Porque houve outro diário, pessoal, e neste, assim como em suas cartas, ele registrou alguns flagrantes nauseabundos de nosso cotidiano escravocrata.
“Espero nunca mais voltar a um país escravagista”, desabafou, alertando o mundo para a extrema violência institucionalizada contra a população negra escravizada. “Os senhores de escravos querem ver o negro como outra espécie, mas temos todos a mesma origem num ancestral comum.” Na casa em que se hospedou no Rio, horrorizou-se com a visão diária de espancamentos de pretos e pardos. Ao passar por uma casa em Pernambuco, ouviu “os urros mais terríveis” de um escravo sendo torturado, mas nada pôde fazer. “Eu me senti impotente como uma criança diante daquilo, incapaz de fazer a mínima objeção.”
Sempre tivemos dificuldade para admitir que somos um país racista, não uma “democracia racial” – e os militares mais ainda. A acusação lhes soa antipatriótica. Foi-se o pelourinho, ficaram os insultos, as piadinhas sobre quilombolas e um racista à frente da Fundação Palmares, a muito custo defenestrado.
Quando, em novembro de 1973, em plena ditadura do general Médici, a antropóloga negra americana Angela Gillian esfregou essa verdade em nossas caras, numa entrevista ao Pasquim, pintou um mal-estar e o jornal quase foi fechado. Onde já se viu dizer que aqui os negros são xingados de “macacos”?