A edição de Um Bárbaro no Jardim, de Zbigniew Herbert, é um acontecimento intelectual tão auspicioso que merecia o seu próprio bloquinho de carnaval. Não apenas pelo autor, que os leitores brasileiros até hoje não tinham visto mais gordo, mas pela escassez de livros de viagem que não se reduzam a guias turísticos. Trata-se de um gênero literário com pedigree e um panteão invejável: Paul Theroux, Robert Byron, Bruce Chatwin, Bill Bryson, Beryl Markhan e tantos outros. Sem falar nos clássicos, que vão de Marco Polo a Camilo Castelo Branco. Ou de jornadas romanceadas, como Danúbio, de Claudio Magris. No Brasil, uma esplêndida agulha no palheiro é TerraMareAr, de Ruy Castro e Heloísa Seixas.
Acontece que viajar faz parte da nossa condição. Eu não me admiraria nada se Lucy, encontrada em 1974 na Etiópia e considerada desde então “o primeiro humano” (a verdadeira Eva), fosse já uma mochileira. Como diz George Steiner: “Os vegetais têm raízes. As pessoas têm pés.”
Claro que nem toda viagem é hedonista ou sequer voluntária. Já em 8 dC, Ovídio foi exilado de Roma para o Mar Negro, por melindrar o imperador Augusto – abrindo uma porteira que nunca mais fechou. E há êxodos ditados pelos imperativos econômicos, como as migrações de hoje e sempre. Não é à toa que a palavra inglesa para viagem (travel) remonte ao francês “travail” (trabalho). Porém, as viagens têm tudo a ver com a literatura. Uma das razões é paradoxal: os escritores são ao mesmo tempo caseiros e nômades que adoram bater perna. Se possível, com classe, ou pelo menos topete. Como a protagonista de O Sol Que Nos Protege, de Paul Bowles, explica a um diletante: “Não, não somos turistas, somos viajantes”. Outra razão é que a própria estrutura literária, ao banir o seu protagonista da sua zona de conforto e fazê-lo se embrenhar em território desconhecido (para sofrer uma epifania e aprender uma lição), corresponde quase a um roteiro de errância. Criar ficção é viajar na maionese. E a grande literatura é algo como uma língua franca, um eterno antídoto contra chauvinismos paroquianos.
O polonês Zbigniew Herbert morreu em 1998, aos 74 anos. Poeta, dramaturgo e ensaísta, foi membro da resistência antinazista. Depois, como desgraça pouca é bobagem, aturou a censura dos comunistas de Varsóvia, pelo menos até à morte de Stalin, em 1953. Aliás, Herbert se referia a Stalin como “o Grande Linguista”, pela forma como distorcia o sentido das palavras. Herbert faz parte do pódio supremo das letras polonesas do século 20, ao lado de Wislava Zsymborska e Czeslaw Milosz. Os dois últimos embolsaram o Nobel, para o qual Herbert era favorito em 1991, mas bateu na trave, perdendo para a sul-africana Nadine Gordimer.
Fora a lírica, Um Bárbaro no Jardim é a obra mais badalada do autor, e o tornou manjado em todo o mundo. São dez textos sobre viagens, sempre com foco cultural, sobretudo artístico. E de uma erudição prodigiosa, embora nunca pedante ou acadêmica. O termo “Bárbaro” do título é uma ironia agridoce que remete aos gregos antigos, que assim designavam todos os estrangeiros.
O primeiro ensaio é sobre Lascaux, a gruta francesa que quatro adolescentes descobriram por acaso em 1940 (durante a ocupação nazista), e cujas gravuras rupestres são talvez a primeira obra-prima da humanidade. Não era uma caverna habitável, mas como Herbert descreve memoravelmente, “uma Capela Sistina subterrânea”. E como as coisas mudam para continuarem as mesmas, as pinturas de Lascaux (sobretudo depois da descoberta de sua grande rival, em Altamira, Espanha), foram acusadas de fake news.
A saga de Lascaux é um romance portentoso, por vezes burlesco. Em 1952, André Breton, o papa do Surrealismo, visitou a caverna, para checar a sua autenticidade. Esfregou com toda a força as gravuras com o indicador e, vendo que o dedo ficou tingido, rugiu que tudo não passava de trambique – e bem recente. Depois, os cientistas e o carbono 14 confirmaram que as pinturas tinham 15 mil anos. Como realça Herbert: “Assim, o método surreal de esfregar o dedão não entrou no arsenal dos recursos legitimados da pesquisa arqueológica”.
Um dos textos mais bacanas é sobre Arles, também na França – talvez por causa do menu: Van Gogh, trovadores provençais, Frédéric Mistral. Foi lá e nos arredores que Van Gogh perdeu a orelha e pintou centenas de telas e desenhos. Herbert não perdoa: “Nenhum deles ficou em Arles, cujos habitantes – para seu opróbrio eterno – escreveram às autoridades exigindo que ele fosse internado num manicômio. Os netos poderiam perdoar seus avós pela crueldade, mas não por deixarem escapar uma imensa fortuna que hoje vale o menor esboço assinado com o nome de Vincent”.
Por vezes, as magistrais ruminações históricas acabam engolfando os testemunhos empíricos do viajante, do lugar em si. Mas nem sempre: vira e mexe ele lacra uma espécie de “pitoresco metafísico”, como quando come uma pizza em Siena ou bebe um Chianti celestial em Orvietto. Essas pinceladas subjetivas têm a precisão de um antropólogo que fosse também um agrimensor.
O ensaio sobre a catedral de Chartres é uma aula informal sobre o gótico. As pirâmides profanas que são as catedrais góticas ainda assombram tanto como os túmulos dos faraós egípcios. Como nota Herbert, “As ferramentas dos construtores de Chartres não diferiam muito daquelas dos construtores da Acrópole”. Nem a respectiva matemática. Outra característica intrigante é que as catedrais góticas não foram obra de reis ou príncipes, mas de comunidades municipais que cabiam quase inteiras lá dentro. Essa criação proliferou por dois séculos, cessando com a Guerra dos Cem Anos: “Os filhos daqueles que esculpiam o sorriso dos anjos agora fabricavam balas de canhão.”
O texto mais longo é sobre a heresia albigense, que prosperou nos séculos 12 e 13 no sul da França, e que suscitou o nascimento da Inquisição. Os albigenses professavam uma dualismo maniqueísta, rejeitavam o Antigo Testamento e a divindade de Jesus. Sua capital era Toulouse, então a terceira cidade europeia, depois de Roma e Veneza. A língua local – a langue d’oc – era o idioma da poesia de toda a Europa, imitada por ingleses, italianos, catalães. Até Dante considerou escrever a Divina Comédia em langue d’oc. Por isso tudo, o veredito patibular de Herbert é tão funesto: “Podemos afirmar, sem receio de erro, que no sul da França existia uma civilização distinta, e a cruzada contra os albigenses foi um confronto entre duas culturas. A derrota de Toulouse é uma catástrofe que se iguala à do extermínio da civilização cretense ou a dos Maias.” Seu epitáfio também é lugubremente célebre. Quando Arnaud Aimery, o legado papal, foi alertado que dentre os prováveis massacrados com certeza também havia católicos, resmungou: “Matai-os todos. Deus reconhecerá os dele.”
Ler este livro é nunca perder a viagem.*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM (INTERMEIOS)
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