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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | A velhice me faz enxergar o que, jovem, eu apenas via

E isto é a indescritível beleza e fragilidade absoluta dos recém-chegados, como Antônia, bisneta que nasceu iluminada por nossas esperanças e que conheci no dia em que me despedi do amigo Affonso Romano de Sant’Anna

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Foto do author Roberto DaMatta

Na Quarta-Feira de Cinzas que passou sem cinzas, vivi um inesperado. Uma coincidência diferente de todas as que experimentei na minha longa vida. Algo situado entre este e o outro mundo, como ocorre quando a gente fica meio bêbado ou meio estatelado ao se confrontar com o extraordinário que brota das nossas rotinas.

Meu evento extraordinário foi o de, num mesmo dia, viver o abençoado nascimento de uma bisneta – Antônia – filha do meu neto Samuel, filho de minha filha Maria Celeste e de sua mulher, Luíza – e a morte do meu querido amigo Affonso Romano de Sant’Anna, a mim ligado por afinidade intelectual, pois eu nele admiro o notável poeta e pensador preocupado com o Brasil.

Antônia vem se somar ao Rocco, meu primeiro bisneto, filho de minha neta Serena e Brian. Tal como ele, Antônia nasceu iluminada por nossas esperanças e para mim, que vivo a temporada final da vida, de um acolhimento extremoso de quem tem consciência do amor pelos descendentes. Desse afeto singular que marca o que chamamos de “relação de família” ou de “sangue” – essa marca de todas as sociedades humanas.

Recém-nascidos são miniaturas reveladoras de uma incondicional dependência que conjura a amá-los e protegê-los Foto: Puhimec/Adobe Stock

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A velhice me faz enxergar o que, jovem, eu apenas via, mas não mirava nos meus filhos e netos: a indescritível beleza, e a fragilidade absoluta dos recém-chegados, exibindo nos seus corpos minúsculos a perfeição comovedora de mãozinhas menores do que o nosso polegar.

Os recém-nascidos são miniaturas reveladoras de uma incondicional dependência que conjura a amá-los e protegê-los. A prontamente integrá-los no lado mais majestoso da nossa humanidade.

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Acolhi Antônia, como fiz com Rocco, para batizá-los com minhas lágrimas, pois a essas vidas em semente eu desejo que tenham um bom destino ao lado da capacidade de resignação e amor que nos tornam capazes de suportar com dignidade nossos enredos.

Saímos, Christina e eu, da maternidade para o velório do Affonso, cuja alegria de viver, amor ao trabalho criativo e obra eu tanto admiro. A clara, bela e arejada capela era cúmplice de sua vida sem invejas e ressentimentos. Uma vida devotada à poesia, aos livros e às ideias.

Dei uma despedida surda ao amigo e companheiro de ideias. O meu abraço na madeira do caixão nada produziu, exceto mais tristeza. Em seguida, vi pela última vez o rosto do amigo englobado pelo silêncio da morte. O silêncio dos que, como dizia Manuel Bandeira, dormem profundamente. Consolei-me com a ânsia de vida de Antônia, chorando a fome de vida dos recém-chegados a este nosso maravilhoso vale de lágrimas.

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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