No livro de Stefan Zweig Novelas Insólitas (Zahar 2015) encontramos personagens extraordinárias – entre eles, dois cães – e um caso perturbador. Na narrativa Xadrez, uma Novela, conhecemos Dr. B, um personagem que lembra o Brasil, pois joga xadrez contra si mesmo, que, num momento culminante, abandona o jogo com um campeão mundial. Tal como fazemos renunciando ou dando golpes ou, no geral, simplesmente seguindo a nossa vergonhosa ética política que legitima enganar o outro a despeito de assaltar ou trair a nação e a sociedade brasileira.

O Dr. B é um personagem que delineia o que Zweig enfrentou quando viveu exilado e deprimido pela nazificação que programou, com aprovação coletiva, essa excrescência desumana: um extermínio étnico.
Impressiona o contraste entre o jogo desumano da tirania autocrática com, como assinala Zweig, “o poder de sedução desse jogo ímpar que escapa, soberano, a qualquer tirania do acaso e confere os louros da vitória unicamente ao intelecto. Antiquíssimo e sempre novo – continua Zweig – mecânico em sua organização, mas somente eficaz por meio da imaginação, limitado a um espaço geométrico rígido e, no entanto, ilimitado em suas combinações, sempre evoluindo e ao mesmo tempo estéril, um pensamento que não conduz a nada, uma matemática que nada calcula, uma arte sem obra, arquitetura sem substância, e, mesmo assim, comprovadamente mais consistente em sua existência do que todos os livros e todas as obras, único jogo que pertence a todos os povos e a todas as épocas e do qual ninguém sabe que deus o trouxe para a Terra para matar o tédio, afiar os sentidos...”.
Esse trecho ajuda a contextualizar o elo entre o Dr. B, prisioneiro da Gestapo, e o xadrez como um instrumento capaz de controlar sua angústia. Ele explica como o Dr. B incorporou o xadrez na sua vida e foi capaz de jogar e memorizar todas as partidas dos grandes mestres com um detalhe excepcional: disputando consigo mesmo, num claro flerte com o suicídio.
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Reitero que essa história me levou ao Brasil. Neste nosso país que joga contra si mesmo desde que passou de marginal a centro do império português. Que proclamou uma república numa sociedade escravista sem republicanos. E que sempre oscilou no xadrez da liberdade contra a censura; da hierarquia versus igualdade; e de autocracia versus democracia. Tal como o jogador de Zweig, que duela contra si mesmo, vivemos numa avalanche de projetos e redefinições jurídicas e constitucionais. Xadrez ambíguo, sujeito às ambições dos mandões e a um mal disfarçado protofascismo produtor de um xadrez de desconfiança e esquecimento.
Produzimos uma anistialândia e um país em permanente partida contra si mesmo. Daí a desconfiança estrutural que põe em risco confiança e credibilidade – peças básicas do difícil e precioso xadrez democrático. l