Depois do Corão, o grande livro sagrado do islamismo, a mais conhecida obra da literatura persa talvez seja o Gulistan, de Saadi de Shiraz, um dos pilares da literatura sufi. O livro chega agora ao leitor brasileiro em sua primeira versão integral, retraduzida a partir da célebre versão francesa de Omar Ali-Shah que, por sua vez, a realizou a partir de uma versão manuscrita do Gulistan datada do ano de 1380. O editor brasileiro, Sérgio Rizek, nos lembra que, até aqui, só dispúnhamos de uma tradução parcial do Gulistan para o português: a realizada por Aurélio Buarque de Holanda a partir da versão francesa de Franz Toussaint e publicada em 1944. Versão que, ele ressalva, não chega a ser exatamente uma tradução, mas apenas uma adaptação do texto original, já que a ele agrega vários escritos de outras origens, que não combinam com nenhum dos manuscritos de Saadi hoje conhecidos. A versão de Toussaint, retraduzida depois por Holanda, surgiu num momento em que a Europa era invadida pela onda do orientalismo e, em conseqüência, representa mais o gosto dos europeus pelo modismo e pelo exotismo orientais que um compromisso com o rigor literário. Nascido em Shiraz no ano de 1175, e um dos amigos mais íntimos do grande poeta e pensador Rumi, o poeta Saadi nos deixou um livro que é considerado, desde então, um dos fundamentos na formação do homem oriental. Conjunto de cerca de duzentas histórias, escritas em formas diversas que vão dos versos simples aos aforismos, passando por breves biografias e provérbios luminosos, Saadi começou a escrever o Gulistan já depois dos 80 anos de idade, nele mesclando poesia, comportamento e moral. A trama, delicada e alegórica, é a essência dos textos sufistas, um termo que, a propósito, pode ter vindo da palavra árabe suf, que designa o pano de lã, em forma de túnica, usado pelos primeiros ascetas. Os sufistas mais modernos, contudo, não aceitam essa interpretação, preferindo crer que sufi provém, ao contrário, de saff, que significa ?fila?, ou ?posição?. Além disso, a base do sufismo é o coração, daí talvez a maneira irregular e apaixonada com que ele se espalhou pelo saber islâmico, tanto entre sunitas, quanto xiitas, numa expansão para além do Islã que chegou a influenciar escritores ocidentais do porte de Goethe, Dante e Defoe. Tradição religiosa aberta, o sufismo exibe influências díspares provindas do caldeirão de culturas que se fermentou durante séculos na região do Islã, antes que esse viesse a aparecer sob a égide de Maomé, guardando resquícios significativos tanto do budismo, como do cristianismo, do maniqueísmo, do hinduísmo e até do neo-platonismo. Saadi viveu 107 anos. Diz-se que realizou muitos milagres, foi venerado, mas apesar desses atributos nada pode fazer a não ser testemunhar resignado as invasões mongóis que levaram a barbárie a Bagdá ? hoje capital do Iraque. Filho de um modesto servidor da corte de Muzuffar al Din Takla bin Zangi, Saadi, diz-se ainda, foi muito atraído na juventude pelos prazeres mundanos. O editor Rizek lembra que o Bustan, sua outra grande obra, relata as primeiras etapas de sua educação em Bagdá, caminho que o levou a se iniciar, mais tarde, na escola sufi Naqshbandi, que prega a filosofia mística da rosa. Ainda seguindo a tradição sufista, Saadi foi um grande viajante: foi à China, à Índia, à Abissínia, numa época em que as viagens ofereciam grandes riscos. O conceito maior do sufismo diz que o devoto deve ?estar no mundo sem ser do mundo?, idéia que Saadi sempre se esforçou para não trair. Entre o homem e Deus, como lembra ainda Rizek, há um véu de percepções ? e é justamente essa cortina que deve ser atravessada através da mobilidade, da piedade e da experiência mística. A importância da tradução francesa de Omar Ali-Shah, importante mestre sufi que chegou a traduzir o Rubaiyyat em parceria com o poeta inglês Robert Graves, é o caráter simbólico que ela restaura em todo o texto, sem deixar que se perca, ao contrário potencializando seu vigor religioso. Lançada em Paris em 1966, pela editora Albin Michel, ela consegue aproximar o leitor, mesmo o leigo, do universo espiritual reinante no século 13, quando o livro foi escrito. ?Sem deixar de atentar para as sutilezas da expressão poética?, diz Rizek, ?cuida zelosamente da mensagem essencial a ser transmitida?. O editor nos lembra ainda em sua rigorosa apresentação, Gulistan é de certa forma um livro cifrado, uma vez que sua estrutura se baseia na alegoria, sendo que as formas figuradas se tornam a estratégia usada pelos mestres do sufismo, como Saadi, para falar, por via indireta, daquelas verdades a que só os iniciados podem ter acesso. Há assim no livro um braço poético, outro místico ? mas o leitor brasileiro, impregnado em maioria pela tradição cristã, ainda assim poderá ler o Gulistan com grande prazer e dele retirar também ensinamentos. Não será por outra razão que, muitas vezes, os sufistas são acusados de extrapolarem a religião, ou até mesmo de heresia, já que, segundo alguns, eles negligenciam muitas das posturas mais rígidas do islamismo. Acusação que se choca, contudo, com sua imensa força mística, expressa numa poética capaz de seduzir até mesmo o mais descrente dos leitores.
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