Minha receita infalível para superar meu sempre renovado desencanto, para não falar desgosto, com o Brasil – um país que não deu certo, na avaliação do escritor Antonio Callado, não só dele, diga-se, e com a qual concordo – é ouvir, embriagar-me de Tom Jobim. Tom era e é o mais gratificante antípoda da sordidez, da cafonice e do destrutivismo que nos rodeiam, sopro permanente de vida e amor à natureza, viga e vão do melhor que a arte brasileira foi capaz de produzir no século passado.
Na véspera do 7 de setembro, em vez de ficar roendo as unhas, à espera de um golpe em cuja possibilidade no feriado da Independência há muito deixara de acreditar, inebriei-me do maestro soberano. Não me limitei a ouvir suas músicas; também reli entrevistas e as anotações que acabaram de fora do Cancioneiro Jobim, que publiquei no primeiro ano deste século. Algumas me pareceram agora menos descartáveis. Talvez haja um mínimo de interesse em saber que a estrofe de Águas de Março, com o carro enguiçado na lama, por exemplo, se inspirou num contratempo vivido por João Gilberto numa ida ao sítio do compositor, em Poço Fundo, na região serrana do Rio de Janeiro, debaixo do maior toró. Foi naquele bucólico retiro de mata e córregos que Tom teve o estalo do “é pau, é pedra, é o fim do caminho”, em março de 1972. Também seu esconderijo quando Frank Sinatra veio ao Brasil em 1979, Poço Fundo merecia ter virado um museu, um lugar de peregrinação, pois em sua modesta varanda de cimento o maestro compôs preciosidades como Chega de Saudade, Estrada Branca, Dindi, Corcovado, Chovendo na Roseira e Matita Perê. A letra completa de Águas de Março, no entanto, foi escrita, ainda em 1972, no Hotel Adams, em Nova York, assim como sua laboriosa transcriação para o inglês. Tom se recusou a confiar os versos de sua magnum opus a um gringo qualquer. As letras que Jon Hendricks e Jesse Cavanaugh haviam feito para algumas de suas composições o deixaram deprimido. Os letristas que depois lhe confiaram (Norman Gimble, Gene Lees e Ray Gilbert) eram melhorzinhos, mas não se comparavam aos seus parceiros originais. Cercado de dicionários, Tom deu-se o luxo de não usar uma só palavra inglesa de origem latina. Cortou um dobrado com certos versos. No desespero, chegou a pensar em se socorrer com o letrista americano com quem sempre sonhara e nunca teve, Johnny Mercer. Finalmente ao chegar ao verso “é um espinho na mão, é um corte no pé” percebeu, com mais clareza, os perigos e limites da literalidade. “Como é que um americano cortaria o pé se ele nunca anda descalço?”, se perguntou – mas logo sossegou, e seguiu em frente, mais confiante. Tom afirmou reiteradas vezes que ele e a bossa nova pouco deviam ao jazz, que suas fontes pessoais eram o samba antigo, com influências profundas de Villa-Lobos, Custódio Mesquita e até Debussy e Ravel. Hoje se tem como certo que, ao contrário do que se dizia, a bossa nova influenciou mais o jazz que o jazz a bossa nova. O reputado crítico Ted Gioia confirma isso em seu livro sobre as 200 melhores gravações de jazz standards, reeditado recentemente, ao incluir em sua lista 17 clássicos de Duke Ellington e seis de bossa nova (cinco de Tom e um de Luiz Bonfá). Tom era, como não podia deixar de ser, um entusiasta da grande canção americana e, por tabela, do inglês, que ambicionava conhecer tão intimamente como conhecia a última flor do Lácio. Sua Chansong, de forte acento gershwiniano e rimas insólitas dignas de Cole Porter e Mercer (“você” com “pince-nez”) e até uma brincadeira com a milionária designer de jeans, Glória Vanderbilt (“by all means”, “by all jeans”), abafou num show do Carnegie Hall. Em seu apartamento em Manhattan mantinha, numa estante atrás do piano, uma fileira de dicionários e compêndios sobre a língua inglesa, permanentemente consultados para dúvidas sérias ou um singelo tira-teima lexical. Participei de um mano a mano do gênero, pouco antes de uma entrevista com ele, nos estúdios da antiga Polygram – um pequeno torneio vocabular, que consistia em descobrir qual de nós se sairia melhor fazendo compras num hortomercado americano. Tom sabia os nomes de todos os legumes e verduras em inglês. “Quiabo?” “Okra”. Ele ganhou. Nosso torneio brotou de uma conversa estritamente musical, em torno, justamente, do inefável Johnny Mercer e suas rimas audaciosas: “red and ruby chalice” com “alabaster palace” e “aurora borealis”, “numbers” com “rumbas”, “tangerine” com “Argentine”, “Tijuana” com “honor”, “Frasier” com “euthanasia”, “bumble-bee” com “jubilee”, “teepee” com “RSVP”. Tom as trazia na ponta da língua, assim como os neologismos mercerianos: “jeepers creepers”, “huckleberry friend” (de Moon River), etc. Boa parte dos seus últimos 32 anos de vida o maestro passou na América, entre Los Angeles e Nova York. Lá gravou seus primeiros LPs (The Composer of Desafinado Plays, The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, A Certain Mr. Jobim e Wave), ganhou visibilidade em shows ao vivo e pela TV, bisou uma histórica parceria com Frank Sinatra, encontrou uma alma irmã (o arranjador teutopolonês Claus Ogerman), compôs algumas obras-primas (Wave, Triste) e rodou o seu último (e melhor) especial para a televisão brasileira, Antonio Brasileiro, uma homenagem da Globo aos 60 anos do maestro, em 1987. Por que Tom fugiu de Sinatra, quando ele veio cantar no Maracanã? Para não ter de explicar ao cantor que, de graça, não subiria ao palco para acompanhá-lo, de jeito nenhum. No que fez muito bem. É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’, ENTRE OUTROS