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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião | O cicerone ideal

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Mesmo não sendo controvérsia tão duradoura e frequente quanto o suposto adultério de Capitu, de vez em quando ela ressurge, quase sempre ao sabor dos festejos de alguma efeméride carioca. Qual o melhor guia literário do Rio de Janeiro? Que escritor melhor expressou em suas obras o espírito, o cotidiano e a topografia da cidade? Com o Rio celebrando os seus 450 anos, a polêmica nem precisou pedir licença para ressurgir mais uma vez, desta vez numa conversa fiada televisiva.Se não me engano, a última vez que com ela deparei foi no finzinho de 1992, envolvendo o jornalista e escritor Moacir Werneck de Castro e o então apenas jornalista e romancista Aguinaldo Silva. Desiludido com o Rio administrado pelo prefeito Marcello Alencar, Aguinaldo tornou público seu desejo de entrar numa máquina do tempo para visitar a cidade no começo do século passado, tendo Lima Barreto como guia, não Machado de Assis - porque nesse caso, acrescentou, "eu estaria nos arredores de Londres".Na revista cultural Rio Artes, Moacir tomou a defesa de Machado, não sem antes admitir a dificuldade de se escolher o mais completo cicerone para uma viagem pelo Rio antigo. O ideal, deixou implícito, seria ter a companhia dos dois. Se Aguinaldo tivesse apenas indicado sua preferência por Lima Barreto, Moacir não teria saído dos seus cuidados para defender Machado. Para ele, considerar Machado um londrino disfarçado era um rematado equívoco, de mais a mais sem a menor originalidade, pois Mario de Andrade já se perdera nessa trilha quando das comemorações do centenário de Machado, em 1939.Num ensaio incluído em Aspectos da Literatura Brasileira, Mario acusou o autor de Dom Casmurro de não ter "sentido" a cidade, de não nos ter dado o seu sentimento, o seu caráter, a sua psicologia, o seu drama irreconciliável e pessoal, aspectos que notara, vivos, nítidos, em Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, a pedra angular da ficção carioca. Embora admirasse e cultuasse o gênio de Machado ("o maior artesão que já tivemos"), aborrecia-se com a "paciência topográfica" do escritor e via seu detalhismo de miniaturista em relação a ruas, bairros, casas de moda ou de pasto, e a fatos históricos, como "um cacoete de memorialista", prejudicial à penetração "no eu irreconciliável de uma civilização, de uma cidade, de uma classe". Achava "haver mais Rio" nos folhetins de França Júnior e de João do Rio, e "muito mais o quid (cerne) dos bairros, das classes e dos grupos" na obra de Lima Barreto ou no Cortiço, de Aluizio Azevedo. Moacir, por sua vez, achava a apreciação andradina subjetiva e infundada - com o que concordo -, além de contraditória, pois à sua maneira, e fazendo poesia, Mario também cedera a uma forte inclinação toponímica em Pauliceia Desvairada.O próprio Lima Barreto, cronista dos subúrbios ("refúgio dos infelizes"), descreveu com rigor topográfico a longa faixa de terra que ia do centro do Rio até Sapopemba, passando por inúmeras estações ao longo da linha férrea da Central do Brasil. Comprovei a pé a exatidão das andanças de Isaías Caminha, ali pelos lados da avenida Gomes Freire e da rua do Lavradio, quando trabalhei no Correio da Manhã, a verdadeira identidade do jornal retratado, com o nome de O Globo, nas recordações do escrivão.Uma repassada na ficção e nas crônicas de Machado desautorizaria as restrições andradinas e a leviandade de Aguinaldo Silva. Mas, para ganhar tempo e obter igual resultado, faço minha a sugestão de Moacir: basta ler as 232 páginas e as três dezenas de capítulos (quase verbetes) de O Mundo de Machado de Assis, de Miécio Táti. Lançado em 1961 pela Livraria São José, vale a pena procurá-lo em sebos, visto que é o mais completo, metódico, erudito e pitoresco inventário da presença do Rio na literatura machadiana. Sem descurar dos mais variados aspectos da fisionomia social da cidade (hábitos, alimentação, lazer cultural, meios de transporte, esportes, jogos, cultos, até carnaval), é um guia sem igual do Rio dos últimos anos do império e dos primeiros da república. Depois de trocar a redação do Correio da Manhã pela do Jornal do Brasil, esta ainda na avenida Rio Branco, repetia quase diariamente o roteiro habitualmente percorrido por Rubião naquele trecho da cidade, saindo da rua do Cano (atual Sete de Setembro), onde o discípulo de Quincas Borba morava, entrando no Largo de S. Francisco, descendo a Ouvidor até a rua dos Ourives (Miguel Couto); às vezes cruzando a rua da Guarda Velha (13 de Maio), pegando a rua da Vala (Uruguaiana), indo até a rua Direita (1.º de Março), onde a avó de Quincas Borba morreu depois de atropelada no Largo do Paço (Praça 15). Sem tílburi ou caleche, outra condução me levava a Botafogo pela rua da Lapa. Com os personagens de Machado podemos cruzar o Rio em todas as direções: do Catete dos gêmeos de Esaú e Jacó ao então ainda mais longínquo Engenho Novo (Dom Casmurro começa numa viagem de trem até aquele subúrbio da Zona Norte carioca), passando pelo Catumbi (onde Brás Cubas chegou a ter casa), Rio Comprido, Andaraí (retiro de Escobar e Sancha) e a Tijuca (cujas chácaras atraíam casais em lua de mel). E ainda esticar até Petrópolis, fugindo ao calor e às abundantes pestilências urbanas. Uns lá tinham casa, como Dom Casmurro; outros hospedavam-se em hotéis, caso do Conselheiro Aires, freguês do Bragança. Subia-se a Serra de trem, mas para pegá-lo era preciso embarcar numa barca, que saía à tarde da Prainha (Praça Mauá) rumo a Magé. Era bem mais dura a vida naquela época. Não creio que valha a pena visitá-la. E se a máquina do tempo enguiçar na hora da volta?

Opinião por Sérgio Augusto
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