Um dos prazeres de se trabalhar com música está no privilégio de ser apresentado a novos mundos. Em três décadas de profissão, eu passei por várias dessas experiências: assistir, na TV Tupi, a Hard Day’s Night, filme dos Beatles (Os Reis do Iê-Iê-Iê, no Brasil), que me transformou num devoto à deusa música; cantar o repertório dos discos de Roberto Carlos e Clara Nunes que minha mãe, dona Neusa, escutava todos os dias; ser apresentado a Live!, disco de 1975 de Bob Marley & the Wailers, que me fizeram trocar o peso do heavy metal pelo groove do reggae, ou ser impactado de modo tão profundo pela performance ao vivo da Filarmônica de Berlim na Oitava Sinfonia, de Anton Bruckner, a ponto de hoje possuir umas vinte versões da obra.
O cantor e compositor inglês Nick Lowe, 75 anos completados no último 24 de março, faz parte desses momentos grandiosos. Eu o conheci em Nova Orleans, no ano de 2012, durante uma pausa na busca por um professor da Universidade de Tulane que possuía uma mecha de cabelos de Elvis Presley com propriedades afrodisíacas – outra história, que contarei assim que tiver oportunidade. Lowe tocou na House of Blues da cidade para uma plateia atenta e devota. Maravilhado com o que assisti, eu adquiri todos os discos à disposição na mesinha de merchandising logo após o show.
Quando escrevi que conheci Lowe, na verdade quero informar que foi o primeiro contato com o autor de alguns dos melhores discos que fazem parte da minha coleção. Nascido em Walton-on-Thames, localidade a Sudeste de Londres, ele é um expoente do pub rock, uma espécie de movimento musical que propunha o retorno às raízes do rock. Lowe adentrou no estilo não apenas em suas antigas bandas, o Brinsley Schwarz e Rockpile, como também nas produções dos principais artistas daquele período. Elvis Costello foi um deles (aliás, o hit What`s so Funny About Peace, Love and Understanding é composição de Lowe), bem como Pretenders da cantora e guitarrista Chrissie Hynde, o cantor Graham Parker e o grupo Doctor Feelgood.
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Em carreira solo desde o final dos anos 1970, Nick Lowe tem uma discografia marcada por longos períodos de ausência, mas de qualidade indiscutível. Ele se alterna tanto na função de roqueiro tradicionalista como na de um artesão da canção, aquele que busca um pop de qualidade. Também possui o mérito de manter acesa as tradições musicais de tempos passados, em especial o cancioneiro dos anos 1950.
As criações de Lowe trazem composições calcadas nas várias vertentes do rock’n’roll, da música country (ele foi genro de Johnny Cash) e do rhythm’n’blues, interpretadas por sua voz de barítono, e com letras que falam de amor e desamor. “Enquanto eu caminho/ Nesse mundo perverso/ Procurando por luz na escuridão da insanidade/…/ Qual a graça em paz, amor e compreensão?”, diz ele, na já citada What’s so Funny About Peace, Love and Understanding.
Cruel to be Kind, sucesso na voz de seu próprio autor, faz uso de uma frase de Hamlet, peça de William Shakespeare, para esmiuçar uma relação amorosa que não está dando certo, e The Beast in Me, gravada por Lowe e depois por Johnny Cash, é sobre um homem que luta contra sua personalidade destrutiva. “Deus ajude o monstro em mim/ Às vezes, ele tenta me enganar/ Diz que é só um ursinho de pelúcia/ Aí que eu devo ter medo/ Do monstro em mim, que todos conhecem…”, diz a letra, entoada. “Minhas músicas não são necessariamente autobiográficas, mas posso me colocar no papel de um personagem com muita facilidade”, disse certa vez, numa entrevista para a revista americana Spin.
O longo nariz de cera – no jargão jornalístico, é aquela introdução antes de chegar ao assunto principal – serve para avisar que Nick Lowe está de disco novo. Indoor Safari, que chegou às lojas e às plataformas de streaming semanas atrás, é seu primeiro lançamento em doze anos – descontando alguns singles disparados no meio do caminho – e foi gravado ao lado de Los Straitjackets, grupo de surf music e rock de garagem de Nashville cujos integrantes se apresentam usando com máscaras de luta livre mexicana. A parceria entre o inglês e os americanos existe desde 2010, embora eu não tenha percebido se a banda que o acompanhou em Nova Orleans usava máscara.
Indoor Safari é, basicamente, um catado dos vários singles que Lowe e grupo lançaram nos últimos tempos, acrescido de três faixas inéditas. São elas: Went to a Party, Different Kind of Blue e Jet Pac Boomerang. É um disco de 37 minutos de duração, divertido e que expõe todas as influências citadas anteriormente. Uma aula de rock da virada dos anos 1950 para os 1960, onde Lowe se permite até a citar algumas de suas influências – os versos de Please Please Me, dos Beatles, enfiados ao final de Jet Pac Boomerang, soam como se ele fizesse uma ponte sobre entre o rock pré-Beatles, que sempre foram suas principais paixão, e que viria a seguir.
Há também duas covers, ambas do soul dos anos 1960: Raincoat in the River, de Sammy Turner (que também foi gravada pelo astro do rock e country Rick Nelson, mas a de Lowe é mais próxima do canto soul) e A Quiet Place, de Garnett Mimms & the Enchanters. Mas se nenhum desses argumentos ainda o convenceram, pelo menos dê uma chance a um sujeito que fez a letra mais triste sobre um instrumento de sopro em todos os tempos. Em Trombone, ele murmura: “Trombone, venha tocar sua música/ Faça com que seja sobre o bom amor que deu errado/ Meu único amor verdadeiro voou/ Então sopre algo triste e lento para mim, trombone.”