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Coluna quinzenal do jornalista e crítico Sérgio Martins com histórias da música

Opinião | Desculpe o auê, Roberto de Carvalho

O guitarrista foi alvo de críticas, xingamentos e calúnia ao longo de sua vida com Rita Lee; sua contribuição à música é, agora, reconhecida e homenageada

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Foto do author Sérgio Martins

Tenho idade suficiente para acompanhar a transição de Rita Lee de principal roqueira do país para o maior nome do pop nacional em todos os tempos. E sou vintage o suficiente para ter visto os ataques que seu parceiro de música e vida, Roberto de Carvalho, recebeu da imprensa musical daqueles tempos. Segundo os críticos, o guitarrista era, para dizer o mínimo, um aventureiro que amansou o lado roqueiro de Rita Lee. Um sujeito que “latinizou” o lado mais rebelde da cantora, transformando-a em popstar acomodada.

Na terça-feira passada, 3, esse senhor, alvo de tantos xingamentos e calúnias, recebeu um prêmio especial por tudo que ele e sua amada Rita fizeram ao cancioneiro do País. Roberto se deparou com personalidades como Fernanda Abreu, Zé Ibarra, Grazi Medori e Pitty, entre muitos outros, recriando sucessos da parceria do casal.

Rita Lee e Roberto de Carvalho em 1987 Foto: Sergio Amaral/Estadão

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No final, cantou Lança Perfume, do disco de 1980 da dupla, acompanhado por convidados e espectadores do evento. E na posição de um dos fariseus que um dia atacaram esse grande músico (na verdade, não me conformava de perder minha musa da adolescência para aquele sujeito), me peguei pensando: “Como demoramos tanto a reconhecer o talento de Roberto de Carvalho?”.

Roberto Zenóbio Affonso de Carvalho é pianista de formação erudita, possui ouvido absoluto e tem um bom gosto incomum na hora de criar melodias. Sabe como poucos dar à canção o trato que ela merece. Marcos Maynard, um dos principais executivos musicais do país, lembra que a versão inicial de Amor & Sexo, música que Rita e Roberto criaram para a crônica de Arnaldo Jabor, era um rock’n’roll.

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Ele sugeriu transformá-la numa balada, que demandaria um esforço maior por causa da métrica do texto. Em poucos dias, Roberto finalizou o trabalho, que virou um dos destaques da trilha de Celebridade, da Globo. Max Pierre, outra lenda do mercado de discos brasileiro, lembra do esmero com o qual Roberto burilou cada uma das criações ao lado de Rita. Eram entregues praticamente prontas e depois recebiam arranjos a cargo dos melhores músicos que haviam à sua disposição – no caso, Lincoln Olivetti, outro pioneiro do pop brasileiro.

Sou muito fã da fase roqueira de Rita Lee. Fruto Proibido, de 1975, e Entradas e Bandeiras, de 1976, estão entre os meus álbuns favoritos em todos os tempos. Foi difícil para mim assistir aquela mistura de David Bowie e Mick Jagger com sabor brasileiro se transformar numa cantora versátil, que incluía boleros, bossa nova e canções românticas em seu repertório (“Onde está meu rock’n’roll?”, perguntei certa vez, num ímpeto de Arnaldo Baptista caiçara).

Mas, como o próprio Roberto me explicou em entrevista, Rita passou por um período de amadurecimento, no qual buscou outras sonoridades. E encontrou em Roberto o músico e ser humano ideal para fazer as mutações que achou necessárias.

Roberto de Carvalho durante cerimônia do Prêmio UBC. Foto: Prêmio UBC/Divulgação

Ouvi todos os discos da fase Rita & Roberto querendo não gostar. E saí delas embasbacado com o que havia acabado de escutar, promovendo um milhão fatorial de audições. Fã de música que sou, me apaixonei por cada referência que o casal colocou em seus trabalhos.

Os teclados do Doors (Riders on the Storm) em Mania de Você, a disco music tardia de Chega Mais e a letra bem sacada de Elvira Pagã, do disco de 1979; outra citação (desta vez de What a Fool Believes, dos Doobie Brothers) em Lança-Perfume, as baladas Caso Sério e Baila Comigo, além de crítica social de João Ninguém no disco de 1980; o pop adulto expresso em discos como Saúde, de 1981 (recomendo escutar a faixa-título no fone de ouvido, atento ao diálogo entre guitarra e teclado), e as canções solares de Flagra, de 1982, de onde saíram a deliciosa faixa-título e a balada Barata Tonta.

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Atento às mudanças de sonoridade no universo pop, Roberto abraçou o rock americano de arena em Bombom, de 1983 (um disco irregular, mas que traz a linda Desculpe o Auê e a pesada On the Rocks) e a new wave de Rita & Roberto, de 1985, de onde saíram a soturna Vírus do Amor e a divertida Yê Yê Yê. Os trabalhos seguintes, ainda que não tragam o ápice criativo das primeiras colaborações da dupla, sempre trazem no mínimo três grandes composições.

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Instrumentista de alta patente, daqueles que tocam sonatas de Beethoven no intervalo do jantar, Roberto optou por servir a um único mestre, Rita Lee. Para tanto, despiu-se do ego e passou a compor e trabalhar exclusivamente para sua musa inspiradora (e chegou a fazer as vezes de empresário: assumiu essa função quando ela saiu da prisão, em 1976, e se viu sem ninguém para marcar seus shows).

Mas seu trabalho fora do ninho, ainda que esparso, é digno de aplausos. Brilha disco solo que João Ricardo, ex-Secos & Molhados, lançou em 1975 (escute os violões e a guitarra de Balada para um Coiote, a minha predileta do disco). No ano seguinte, bandeou-se para os lados de Ney Matogrosso, desafeto de João Ricardo, e deu o sotaque latino de guitarra em Bandido Corazón. E vale muito a pena escutar seu único disco solo, de 1992, disponível apenas em plataformas específicas de streaming. Uma beleza na qual convivem rocks inspirados pelos Rolling Stones e Santana, rocks e pops que assumem características de jazz e muito mais – quem terá a inteligência de fazer uma versão de Meu ABC?

Na terça-feira passada aquele sujeito, por mais merecedor das homenagens daquela noite, custou a acreditar na honraria. Relutou até a iniciar os versos de Lança-Perfume, alegando que era desafinado demais para a função. Falsa modéstia ou excesso de humildade? Jamais saberei. Mas Roberto de Carvalho ainda não recebeu o crédito devido por tudo o que fez pelo pop nacional. E ainda temos tempo de sobra para reparar isso.

Opinião por Sérgio Martins

Jornalista e crítico musical

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