Eu nasci em 1967, três anos depois da ditadura militar ser decretada no País. Meu avô, seu Osvaldo, era do Partido Comunista e foi preso por defender ideias contrárias às do governo (meu pai ficou tão traumatizado que só recentemente contou de uma carta que meu avô escreveu para os filhos, pedindo para “tirar o lixo” – um código que significava jogar fora toda a literatura de esquerda que havia dentro de casa).
Uma das atitudes mais estúpidas da ditadura estava na escolha do que nós, cidadãos brasileiros, deveríamos ler, assistir ou escutar – a censura, que destroçou canções de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil & cia., mutilou filmes de Stanley Kubrick e Federico Fellini, entre outros cineastas, e dizimou redações de jornais.
É de se espantar, portanto, que um grupo de políticos apresente um projeto de lei na qual pede a proibição da performance de shows, artistas e eventos dedicados ao público infanto-juvenil que envolvam, como o próprio texto diz, “expressão de apologia ao crime organizado ou uso de drogas.” O pivô dessa lei é Oruam (nome artístico do carioca Mauro Davi dos Santos Nepomuceno), cujas performances trazem apelos pela libertação do pai, o traficante Marcinho VP. Oruam, aliás, ostenta em seu corpo uma tatuagem de papai VP e do tio, Elias Maluco, bandoleiro cruel e sanguinário que esquartejou e matou Tim Lopes, jornalista da Rede Globo que investigava o abuso sexual de menores nos bailes funk da Vila Cruzeiro, no Rio.
Oruam e seus defensores apelam para a surrada teoria de que, por ser de periferia, o funk é motivo de preconceito da chamada elite – cujos filhos, aliás, são consumidores vorazes do festival de “senta senta senta” que abundam (desculpem o trocadilho) nas letras do gênero. Comparam, inclusive, com o samba, gênero que igualmente sofreu preconceito no início do século passado. Bobagem. Havia nos sambistas uma urgência em mostrar que eles não eram sujeitos ao léu, ao contrário da ostentação do funk. Seu Monarco (1933-2021), um dos maiores compositores do gênero, me contou que Paulo da Portela (1901-1949) fazia com que os agregados de sua escola falassem e se vestissem bem, além de terem empregos formais para provar que não se tratava de um monte de malandros. Coube ao primeiro governo de Getúlio Vargas, que durou de 1930 a 1945, tirar o samba da marginalidade.

Um dos queixumes que se faz em relação a Oruam estaria nas letras que defendem a criminalidade. Mas alguns de meus ídolos do samba e da MPB também o fizeram. Bezerra da Silva (1927-2005) era conhecido pelo epíteto de “cantor de bandido”, de tanto que exaltou a malandragem. Bezerra defendeu Escadinha (1956-2004), nome de guerra do traficante José Carlos dos Reis Encina, um dos fundadores do grupo criminoso Falange Vermelha. “O morro é pobre e a pobreza não é vista com franqueza/ nos olhos desse pessoal intelectual/ Mas quando alguém se inclina com vontade em prol da comunidade/ Jamais será marginal…“, diz a letra de Meu Bom Juiz, de 1986.
A canção foi tocada no velório de Escadinha, assassinado a tiros de fuzil. Charles Anjo 45, que Jorge Ben Jor homenageou em 1969, era o “Robin Hood dos morros/ Rei da malandragem/ Um homem de verdade/ Com muita coragem” e que marcou bobeira e foi tirar férias na colônia penal. Numa entrevista que deu para mim, em 1991, o cantor e compositor carioca dizia que Charles era um justiceiro, um “Charles Bronson do morro”.
Vamos falar de rap e de funk? Em 2001, os Racionais MC’s, principal grupo de rap do País, lançaram Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. Repleto de referências líricas ao gangsta, ladainha bandida importada dos Estados Unidos, ele trazia letras como Eu Sou 157 (furto, no código penal) que embora fale de um ladrão, trazia um lamento por não ter trilhado o caminho do bem. “Família em primeiro lugar, é o que há/ Juro pra senhora, mãe, que eu vou parar/ Meu amor é só seu, brilhante num cofre/ Enquanto eu viver, a senhora nunca mais sofre/ Tá daquele jeito: Se é, é agora/ É calça de veludo ou bunda de fora/ Me perdoe, me perdoe, mãe, se eu não tenho mais/ O olhar que um dia foi te agradar com cartaz/ Escrito assim: 12 de maio – em marrom/ Um coração azul e branco em papel crepom/ Seu mundo era bom/ Pena que, hoje em dia, só encontro no seu álbum de fotografia/ Juro que vou te provar que não foi em vão…”
O funk criou o proibidão, vertente que glorificava a vida de crimes e o sexo. Mas de vez em quando, alguém de suas fileiras trazia uma letra para reflexão. “Eu sou amante do dinheiro e do perigo/ Mal exemplo a ser seguido/ Maquinista do trem bala, rodeado e perseguido, porém/ Mas com o sistema o desabafo é no gatilho/ Eu não tô desamparado/ Porque Deus é meu juiz, Jesus Cristo, advogado, Amém…” versa MC Smith, um dos principais nomes do proibidão na letra de Vida Bandida 2.
As letras fracas de Oruam são tão nocivas quanto às da turma do sertanejo, que fala de drogas (afinal, álcool também não é entorpecente?), baladas inconsequentes e tratam as mulheres de modo depreciativo. O problema está no que ele fala, defende e faz. Ele não é filho de um herói, mas sim de um sujeito nocivo à sociedade. Recentemente, um dos membros de sua trupe sugeriu que fosse dado “um jack” na vereadora que propôs o veto a seus shows (e convido os leitores a procurar no Google o que significa “dar um Jack”).
Eu não consumo a música de Oruam e não tenho o mínimo interesse em conferir uma apresentação dele. Mas, por conta do período em que era proibido até de assistir aos meus ídolos (quando tinha quinze anos fui ver Ney Matogrosso, escondido porque seus shows eram proibidos para menores), eu jamais diria para alguém o que podemos ou não assistir. No mínimo, me preocupar com o fato de nossos filhos, enteados, sobrinhos e afins terem como ídolo um sujeito que normaliza uma vida de crimes e ameaça fisicamente quem discorda de suas, digamos, ideias. Proibir, jamais. Mas está na hora de termos ídolos melhores do que Oruam e agregados.