PUBLICIDADE

Situação de risco para as ciências

Anpocs, Cebrap, Centro de Estudos Brasileiros em Oxford: alerta de como o obscurantismo mina nossas instituições

PUBLICIDADE

Por José de Souza Martins

Quem somos, como somos, o que queremos ser, como queremos ser e o que não gostamos de ser, constitui o cardápio que sintetiza as dezenas de conferências, mesas-redondas, seminários, cursos, que marcam as reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs). Mais de mil cientistas sociais brasileiros e candidatos a cientistas sociais atenderam a essa convocação e compareceram a Caxambu-MG, nesta semana, para fazer o diagnóstico da Nação e verificar a quantas anda esta sociedade. A sociedade não se move sem consciência social, consciência de que somos um todo, embora nem sempre percebamos que cada um é dela agente e protagonista. Desde as origens, no século XIX, a Sociologia se norteia pelo suposto de que é ela a consciência científica da sociedade e essa tese abrange as indagações das duas ciências afins, a Antropologia e a Ciência Política. Alguns dos nossos problemas sociais e políticos mais graves só chegam explicados ao conhecimento e à consciência dos cidadãos graças ao trabalho difícil e não raro perigoso de cientistas sociais, de antropólogos e sociólogos em situação de risco, físico ou político, que desvendam humanidades perdidas e ocultas, pessoas, grupos e nações ameaçados, esquecidos, formas de crueldade social e de violência para as quais o homem comum é cego e não raro cúmplice. Ou graças ao trabalho de cientistas políticos que nos mostram, acima das fantasias partidárias e das ilusões ideológicas, o que se esconde por trás da trama do poder, das grandezas e misérias da política e dos políticos. O fim da ditadura militar não parece ter atenuado a situação de risco e adversidade em que trabalham os profissionais dessas ciências. Ainda agora, o Centro de Estudos Brasileiros, da Universidade de Oxford, fundado e dirigido pelo eminente historiador Leslie Bethell, inaugurado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, encerrou suas atividades por falta de apoio do governo brasileiro e de empresas como a Petrobrás, de que dependia. Ao mesmo tempo, a Capes - Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior, financidadora de programas de mestrado e doutorado, informou ao Cebrap - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, fundado por pesquisadores cassados pela ditadura, que foi presidido por Fernando Henrique Cardoso, que não terá renovado, a partir do início de 2008, o convênio que assegura os recursos para o seu Programa de Formação de Quadros Profissionais. Não há por que não temer que as duas medidas do governo Lula se situem em motivações menores contra a obra de uma figura densamente simbólica do partido contrário. Mesmo que, de fato, o Centro da Oxford não tenha o menor caráter partidário, tenha sido acolhedor em relação a Lula desde antes da Presidência e tenha abrigado até um seminário francamente simpático ao MST, um dos principais braços políticos do petismo. E que o Cebrap não tenha caráter partidário e abrigue no seu núcleo dirigente, também, intelectuais francamente favoráveis ao PT. O obscurantismo de medidas como essas expressam a equivocada convicção de que a sociedade alienada tem espaço para a intervenção de formas de conhecimento tuteladas e manipuladas. O grande papel dos cientistas sociais está justamente em desvendar os mecanismos sociais da cegueira e também os riscos que pesam sobre os que se empenham em tais desvendamentos. É nessa perspectiva que se deve ver a ambigüidade que envolve os esforços de grupos partidários como os de tratar o marxismo como ciência social substitutiva, um dos assuntos da reunião de Caxambu. A questão é muito complicada e vale também para o PT. As ciências, com freqüência, têm que disputar prestígio e função com o conhecimento de senso comum e com o conhecimento religioso. Mas as ciências sociais, além de estarem sujeitas a questionamentos originários dessas formas particulares de conhecimento, são assediadas pelos grupos ideológicos e partidários. Esse embate tem surgido nos congressos de sociologia e também nas reuniões da Anpocs. Expressa o que já ocorre, há muito, nas universidades, em que há quem proponha o marxismo como a única ciência social legítima, porque revolucionária. Ora, a sociologia nasceu como ciência voltada para a explicação dos fatores da desordem social em face do primado da ordem. Ou as irracionalidades sociais, a quebra da racionalidade inteligível que nos rege. Há, sem dúvida, uma sociologia na obra de Karl Marx, fundamento dos vários marxismos que dela decorrem. Mas esses marxismos deram à obra do autor alemão uma unilateralidade que ela não tinha. Não obstante o pressuposto de uma incontornável crise do capitalismo, que seria superado no socialismo decorrente. No entanto, na sociologia de Marx há, também, indiscutível preocupação científica com os mecanismos sociais da continua recriação e reiteração da própria sociedade capitalista, ao mesmo tempo em que surgem continuamente os fatores de sua potencial crise e superação. Aos quais o capitalismo reage aperfeiçoando os processos sociais de sua própria vitalidade econômica e política. Até mesmo incorporando as esquerdas na ampla tolerância e até patrocínio nas instituições acadêmicas e nos congressos científicos, nas relações industriais, na política social, na administração dos conflitos. O marxismo assimilado deixou de ser revolucionário, tornando-se tão fragmentário e instrumental quanto é tudo na sociedade contemporânea. O que se esconde por trás desse embate sem fim e sem futuro é o de saber quanto as ciências sociais podem contribuir para explicar o que nos oprime e desorienta. Mas também para a redescoberta da esperança como energia vital do corpo social, para identificar os novos agentes sociais da esperança libertadora e transformadora, emancipadora do ser humano em relação às misérias de todo tipo. As ciências sociais são ciências da ordem sem dúvida, que, porém, só têm sentido como instrumentos do desvendamento da esperança. A ordem como mera ordem é uma quimera.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.