Sucesso como romancista surpreende ex-delegado

Joaquim Nogueira, de 62 anos, levou para Informações sobre a Vítima, seu livro de estréia, a dura realidade da rotina policial

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Por Agencia Estado
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Em Joaquim Nogueira, o que mais se destacam são os olhos. Ligeiramente grandes, às vezes espantados, indagando; e, em seguida, o corpo troncudo, a fala mansa, o jeito simpático, o receio de se expressar confusamente com as palavras. Aos 62 anos, ele ainda não se acostumou com o sucesso - seu livro de estréia, Informações sobre a Vítima (352 páginas, R$ 29,50), lançado recentemente pela Companhia das Letras, está prestes a esgotar a primeira edição de 3 mil exemplares e uma nova fornada está por vir. "Em nenhum momento, imaginei que isso fosse acontecer", reconhece ele, ainda atordoado com o assédio do público e da imprensa, interessados na forma de criação desse acreano. A curiosidade é justificada - o livro conta a história da investigação do assassinato de um policial. Nada de psicologismo ou deduções feitas em bibliotecas fumacentas: o estilo é seco, frio, direto e a ação acontece nas delegacias, ruas e avenidas de São Paulo. É a história de Venício, um tira durão e honesto que se dispõe a vingar o assassinato de um amigo policial com passado duvidoso - foram encontrados 750 gramas de cocaína em seu carro. Na busca por dados que esclareçam o caso, as tais "informações sobre a vítima", Venício freqüenta o bas-fond de São Paulo e se envolve na teias traiçoeiras da burocracia policial. "Escrevi sobre uma realidade que conheço, a do plantão policial; por isso, tentei ser o mais fiel possível", conta Nogueira, que foi delegado até 1998, quando decidiu se aposentar para investir unicamente em literatura, obsessão que o acompanhava desde que chegou à capital, em 1960. Nogueira foi delegado no 38.º Distrito Policial, na Vila Amália, zona norte de São Paulo, a poucas quadras de onde ainda mora, e lá conviveu com diversas pessoas que o inspiraram na criação da trama. É uma situação semelhante à que viveram outros brasileiros que se consagraram com histórias policiais, como Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza. "Como delegado, não tive muita experiência na rua, pois fui mais um plantonista, mas acompanhei muitos casos", conta Nogueira, que só precisou sacar a arma uma vez em toda sua carreira para dar alguns tiros, situação que prefere não lembrar. Acumulou, porém, muita convivência com pessoas que figuram em seu livro, como escrivães, investigadores, delegados, carcereiros, PMs, presos e informantes. A rotina também lhe forneceu os endereços certos para a história: a bordo de seu velho Fusca, Venício cruza a cidade na busca de informações, fazendo trajetos como do Cemitério Municipal Chora Menino, no Imirim, até um dos postos do Instituto Médico Legal, na Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros. "Só inventei alguns logradouros para evitar reclamações, como o local do crime que é uma praça fictícia na zona leste. Também deixei o Venício lotado no 38.º DP, mas coloquei a delegacia no Horto Florestal, que não tem uma." A fidelidade, tanto ao espaço como à forma de atuação de seus personagens, era um dos aspectos de que Nogueira não abriu mão enquanto escrevia. "Ao imaginar a trama, decidi que seria uma investigação sobre um assassinato, portanto deveria seguir exatamente os passos que acontecem na vida real", explica o escritor, que alterna tanto uma linguagem ágil ("Os caras do Homicídios não descobrem nada, aí entra em ação o grande detetive do Horto Florestal e racha o crime") com momentos de fino humor ("Ela bateu o telefone, dura e autoritária como um funcionário da Receita Federal"). "Mesmo que incomodasse alguém, eu não poderia faltar com a verdade." Recepção dos ex-colegas - Joaquim Nogueira temia que a fidelidade na recriação de fatos pudesse incomodar seus ex-colegas policiais. Afinal, corrupção e violência contra presos aparecem na narrativa de Informações sobre a Vítima e mesmo o tira assassinado não era flor que se cheirasse: além da boa dose de cocaína descoberta em seu carro, Toninho mantinha uma loja não legalizada de compra e venda de carros usados na zona norte. "Eu não podia trapacear e criar uma ficção irreal", justifica-se o escritor. "Tive de fazer uma descrição crua." Assim, quando o livro foi lançado em abril, ele, prudente, deixou de freqüentar por alguns dias a Associação dos Delegados, localizada no centro de São Paulo, onde encontra tanto colegas aposentados como ele como os que estão na ativa para uma partida de sinuca regada a cervejinha. "Quando voltei, apenas alguns tinham lido o livro e as ressalvas foram poucas", conta ele, aliviado. A obra foi até recebida com honra: notícias sobre sua publicação foram afixadas no mural da instituição. "Na verdade, não acredito que muitos vão se dispor a ler." Ao apostar na veracidade dos fatos, Nogueira tentou ser um policial digno como seu narrador, Venício, que mora em um conjunto de prédios no Mandaqui, zona norte, locomove-se dentro de um Fusca velho e é obrigado a pendurar a conta do almoço e jantar, no Bar do Luís, perto de seu apartamento. "Ele vive honestamente, à custa de seu salário, mesmo convivendo com diversos momentos tentadores de enriquecimento rápido." As diferenças entre Venício e Toninho equilibram os personagens do romance, da mesma forma que ajudam a informar melhor. Segundo o escritor, há muita lealdade entre os policiais, que se cumprimentam nas trocas de plantão, além de manter hábitos rígidos, como não fumar nem beber. "É certo que ainda existe muito preconceito da população, que muitas vezes critica a violência policial e isso precisa diminuir." O casamento da literatura com a carreira policial é marcante na vida de Joaquim Nogueira, um filho de seringueiro que foi servente de pedreiro, pintor de paredes, ajudante de serraria, auxiliar de escritório, bancário e oficial de justiça até se tornar delegado. Ao chegar a São Paulo, em 1960, ele logo se encantou com revistas e livros baratos de histórias policiais, tornando-se leitor compulsivo. Começou com tipos como Shell Scott, investigador criado por Richard Prather, até descobrir os grandes nomes como Dashiel Hammett, Agatha Christie e David Goodis. Dois destaques: Raymond Chandler, que modernizou o romance policial com uma prosa apuradíssima, e James Cain, que, em seus livros, mergulhou fundo na miséria humana, expondo a crueldade, a falsidade, a ambição e a traição em todas as camadas sociais. Decidiu escrever e, como dividir plantão com criação não dava certo, aposentou-se no tempo devido. Criou Informações sobre a Vítima às cegas ("Não conheço outros escritores ou críticos literários para trocar idéias") e enviou os originais para a Companhia das Letras. Dias depois, a notícia da publicação do livro e a conseqüente repercussão. Agora, pegou gosto: "Quando a poeira baixar, vou alugar um pequeno apartamento onde vou escrever outra aventura de Venício. Tenho muita história para contar."

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