Maria Fernanda Cândido estreia peça sobre Clarice Lispector: ‘O mundo demonizou a mulher’

De Paris, onde mora, a atriz fala sobre a peça ‘Balada Acima do Abismo’ e diz que a escritora pode ajudar as mulheres a se compreenderem em uma sociedade feita por e para os homens; veja vídeo

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Foto do author Danilo Casaletti

Está no poema Visão de Clarice, escrito por Carlos Drummond de Andrade para Clarice Lispector (1920-1977), a inspiração para o título do espetáculo com o qual a atriz Maria Fernanda Cândido reinaugurará o Teatro D-Jaraguá, no dia 25 de janeiro, ao lado da pianista Sonia Rubinsky: Balada Acima do Abismo.

Publicado pelo Jornal do Brasil em 10 de dezembro de 1977, dia seguinte à morte da escritora e data de seu nascimento, o texto de Drummond tenta compreender que mistérios há em Clarice. “Ficamos sem saber a essência do mistério. Ou o mistério não era essencial, era Clarice viajando nele”, escreveu o poeta, ainda impactado pelo sentimento da perda.

Na peça estrelada por Maria Fernanda, concebida e adaptada pela dramaturga Catarina Brandão e dirigida por Gonzaga Pedrosa, estão, entre outros textos, o conto As Águas do Mundo: “Por que é que um cão é tão livre? Por que ele é o mistério vivo que não se indaga”, diz um trecho.

A pianista Sonia Rubinsky e a atriz Maria Fernanda Cândido juntas por Clarice Foto: Daniela Petrel

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Juntam-se a este na missão de contemplar o arco de vida de Clarice, os contos Restos de Carnaval, É Para Lá que Eu Vou e A Repartição dos Pães, além de recortes de entrevistas e declarações da autora interpretados em primeira pessoa pela atriz. Na trilha musical, composições de Villa-Lobos, Alberto Nepomuceno e Rachmaninoff.

Uma “costura sutil”, define Maria Fernanda Cândido. Ou fragmentos para chegar a um todo. Bem ao gosto de Clarice. Na conversa com o Estadão, por vídeo, ela fala desde Paris, na França, país em que vive há seis anos com o marido, o empresário Petrit Spahija, e dois filhos do casal, Tomás e Nicolas.

Foi, aliás, na capital francesa que Balada Acima do Abismo nasceu para ser apresentada na Embaixada do Brasil em Paris, em 2021, em comemoração ao centenário da escritora. Entre 2022 e 2023, cumpriu temporada no espaço L’Accord Parfait, em Montmartre, bairro boêmio de Paris.

Chegar ao Brasil, adaptado para o português, contempla, de certo modo, um desejo de Clarice. Disse, certa vez, a escritora nascida na Ucrânia, criada em Recife, e estabelecida no Rio de Janeiro, que desejava não ter aprendido nenhuma outra língua para que sua abordagem em português fosse “virgem e límpida”.

A experiência, agora, pode ser de Maria Fernanda. Para ela, o idioma foi uma questão importante. O texto nasceu em francês. “Pela diferença das línguas, um ponto ou outro sempre fica fora de contato com a obra original, mesmo que a mensagem principal continue a ser transmitida”, reflete. Isso, ela garante, já não é mais motivo de sofrimento, como foi no passado.

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“No começo, eu ficava inconformada com as traduções. Porém, entendi que essas incomunicabilidades são parte da vida. Elas são muito interessantes, pois me obrigam a entender como determinada cultura compreende aquela frase ou palavra. É um exercício bonito”, diz.

Um exemplo prático: em setembro de 2023, a atriz australiana Cate Blanchett exaltou Clarice ao ser premiada pelo conjunto de sua obra no Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha. Cate definiu a escritora como “gênio absoluto”.

O texto de Clarice que alcançou Cate foi a crônica Diálogo do Desconhecido, do livro A Descoberta do Mundo, lançado em 1984. “Vivemos tempos de incerteza. Eu pego coragem, de certa forma, de Clarice Lispector, uma escritora brasileira que é simplesmente genial, cujos trabalhos eu tenho lido recentemente, e ela diz que há certas vantagens em não saber”, disse a atriz. Ao que parece, não houve ruído impedindo a mensagem.

Para Maria Fernanda Cândido, a fala de Cate Blanchett, de se valer de Clarice para fatos ou percepções dos dias atuais de maneira objetiva, afasta a escritora de certo hermetismo com o qual ela é sempre associada, principalmente no Brasil.

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“Atualmente, talvez estejamos com os ouvidos mais abertos para Clarice. Por vezes, ela parece paradoxal, porque ela diz ‘tudo o que não sei é o que constitui a minha verdade’. Essa alegria difícil acompanha a obra de Clarice o tempo todo. É um jeito de entender a vida. É menos cartesiano, menos positivista. Aceita contradições. Dá mais trabalho, porém, é mais real”, diz a atriz.

Duas vezes Clarice

Maria Fernanda Cândido reflete sobre o feminino presente na obra de Clarice Lispector Foto: Daniela Petrel

Maria Fernanda Cândido conheceu a obra de Clarice Lispector na adolescência, em um caminho natural: a leitura escolar. Comum até certo ponto. Apaixona-se ou não por Clarice. O reencontro entre a atriz e a escritora se deu quando Maria Fernanda ganhou o livro A Paixão Segundo G.H. do diretor Luiz Fernando Carvalho. Na época, os dois haviam trabalhado juntos na telenovela Esperança, entre 2002 e 2003. “Leia, talvez você goste”, disse Carvalho.

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As gravações da novela, naquela altura, já haviam se encerrado. Maria Fernanda não pôde trocar impressões com Carvalho de maneira mais próxima. Em 2018, o diretor a convidou para filmar o longa A Paixão Segundo G.H., lançado em 2023, e com o qual ela ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Siena, na Itália.

Para a atriz, o filme de Carvalho e a peça de Catarina Brandão se complementam, mas também caminham juntos para abarcar diferentes perspectivas da escritora. “Na obra de Clarice, os temas aparecem e reaparecem. Você poderá achar a semente de A Paixão Segundo G.H. em As Sementes do Mundo ou em O Ovo e a Galinha”.

Na época do lançamento do filme, Carvalho disse ao Estadão que, para a personagem, precisava de uma atriz de “beleza clássica”, para que essa beleza pudesse ser descontruída ao longo da história, junto com outras ‘normas’ impostas pela sociedade. Na peça, Maria Fernanda não precisou se colocar dessa maneira.

Não que o feminino e as desconstruções propostas por Clarice não estejam presentes. Eles são indissociáveis de sua obra. Estão, também, na história pessoal de Maria Fernanda.

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Quando fez, em 1999, Paola Spezatto, em Terra Nostra, uma personagem italiana, foi chamada de “Sophia Loren brasileira”. No ano seguinte, em uma eleição realizada pelo programa Fantástico, ganhou o título de “mulher mais bonita do século”. Maria Fernanda garante que não colocou nenhuma dessas “etiquetas” em seu corpo - e, sobretudo, não deixou que elas tapassem seu trabalho como atriz.

“Ninguém me perguntou se eu queria participar desse concurso na época. A beleza passa rápido, é efêmera. Estou em outra fase da minha vida. Fiquei conectada com aquilo que eu queria fazer. E, se quero fazer algo, vou a fundo. Me dedico”, diz.

Um desafio, segundo ela, em um mundo feito e comandado por homens. Clarice, com suas reflexões, pode ajudar nessa questão?

“A descoberta atual de Clarice em diversos países tem a ver com a existência feminina que participa de um mundo que não é feito de mulheres e para mulheres. É um mundo masculino. O mundo demonizou a mulher, a colocou como sinônimo do mal, do pecado. Ter uma literatura que fala desse feminino, de um jeito de ser e existir no mundo, encontra ressonância em tempo em que estamos abertos para essa discussão. Mas o discurso, porém, ainda precisa encontrar a prática”, finaliza.

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Serviço:

Balada Acima do Abismo

Com Maria Fernanda Cândido e Sonia Rubinsky

Teatro D-Jaraguá - R. Martins Fontes, 71, Centro

Estreia, 25/1

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5ª a sábado, 20h; domingo, 19h. Até 9/2.

R$ 150

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