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Minha filha, Dilma Rousseff - 8/3/2006

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Por Estadão

Entrevista concedida a Anélio Barreto em 8 de março de 2006

 

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Celso Junior e Tiago Queiroz/AE

Inquieta, falante, perguntadora, agitada, incansável, perturbadora, risonha, incontrolável ou-simplesmente- da pá virada. A garotinha Dilma Vana Rousseff era tudo isso e, pior: oficialmente tudo isso. As venerandas madres do colégio Sion de Belo Horizonte registravam semanalmente em seu boletim escolar: 'ela não fica quieta, pergunta muito, nota 5 pelo comportamento'. Aproximadamente15 anos depois essa garota 'nota 5 pelo comportamento' se tornaria uma das principais guerrilheiras urbanas- perseguida, presa, torturada - que combateram pelas armas a ditadura militar no Brasil.

As lembranças vêm voltando para esta senhora elegante em uma bela e confortável residência em Belo Horizonte, bairro de São Luís, onde há um ano está morando - é a senhora Dilma Rousseff, mãe da ministra de mesmo nome, hoje uma das mulheres mais poderosas do País,titular da Casa Civil da Presidência da República. Dilma mãe é uma figura esguia, de estatura mediana, a quem dificilmente se atribuiria a idade atual, 80. Tem cabelos castanhos soltos e cheios como a filha, olhos fortes e brilhantes, na mesma cor, nariz afilado, lábios marcados por batom vermelho, brincos e colar de pérola e, junto a ele,uma correntinha de ouro ostentando uma água-marinha de bom tamanho. Usa blusa escura, sem mangas, e uma calça comprida discreta, em tom pastel. Fala com bastante energia, às vezes ouve com dificuldade, mas isso quase não se nota.

Por que o nome Dilma, senhora: Dilma mãe, Dilma filha?

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Não sei como surgiu, meu pai me deu e depois passou para minha filha. Eu nem acho bom isso: mãe,filha, pai, filho,como mesmo nome. Não tomei parte, não, só me apresentaram o nome e eu concordei. Dilma Jane Silva, professora, e Pedro Rousseff, advogado, búlgaro naturalizado brasileiro, conheceram-se em Belo Horizonte, iniciaram um romance por volta de1945, casaram-se e Dilma Vana Rousseff nasceu no dia 14 de dezembro de 1947.

1.Dilma com um ano e meio, emroupinha de festa 2. Aos 11 meses, no colo da avó 3.Ela aos 3 anos, e o irmão Igor, um ano mais velho 4. Aos 5 anos, um capricho:  sair de holandesa no carnaval 5. Dilma aos 8 anos 6. Com a filha, Paula, e a mãe 

Bastante ativa, Dilma divertia-se comas coleguinhas em brincadeiras comuns a todas as de sua idade: roda,pular corda, sempre gostou muito de água, de nadar...e de ouvir histórias.Era o tempo das novelas infantis no rádio, e ela era uma ouvinte atenta. Entrou para o Colégio Sion e, antes mesmo de formalmente alfabetizada, gostava de sentar-se com um livro, preferia a Coleção Melhoramentos que tinha Branca de Neve e os 7 Anões, Joãozinho e Maria e, bem, era uma farta coleção.Até Que um dia o pai duvidou que ela estivesse mesmo lendo. Ele a chamou: - Como é que você fica lendo sem entender, sem compreender as palavras? -Tá bem- respondeu ela. -Vou dizer a história. E o resumo batia com o conteúdo. O pai, então, estabeleceu uma condição: -Vamos fazer o seguinte: você lê, risca as palavras que não entende e depois conversamos. Praticamente não foi preciso: ela marcava as palavras,o pai dizia o que significavam, mas já estava tudo lá, na versão dela. (Sempre foi apaixonada por livros. Depois da coleção Melhoramentos leu os Irmãos Grimm, descobriu Monteiro Lobato e Jorge Amado,cuja obra conheceinteira. Apaixonou-se por Clarice Lispector.

Na época em que foi secretária de Energia, no Sul, dedicou-se à leitura técnica em sua área a ponto de poder discutir detalhes com engenheiros. Na prisão, é impossível fazer a relação de tudo o que leu. Em termos de música, é versátil: gosta da clássica e de vários gêneros. Na MPB, destaque para Chico e Francis Hime.) Apesar daquilo que as madres consideravam um problema, e dos graves - a inquietude, a curiosidade -, Dilma sempre esteve ao lado ou acima de suas colegas mais inteligentes.A mãe recorda-se de um episódio: - Ela estava no quarto ano primário do Sion quando teve uma gripe muito forte, uma sinusite, e ficou um mês sem aulas. Combinei com as irmãs que elas mandariam para nós tudo o que havia sido ensinado no dia, e também o dever de casa. E ela, na cama, sentada ou deitada, resolvia todas as questões, lia tudo o que havia. Quando voltou e fez a prova final, ela, que havia faltado durante um mês, tirou o primeiro lugar.

Havia sido plantada, e então germinava e floria a personalidade da mulher severa e exigente que ocupa hoje uma das salas do quarto andar do Palácio do Planalto, próxima à do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Dilma Rousseff, na Casa Civil, é,segundo toda a equipe ministerial, que com ela despacha, uma pessoa "durona, que dá broncas". A pergunta mais freqüente que tem para colegas do ministério, e para assessores, é: "Você tem certeza disso?". uma reunião, em meio a outros colegas, com secretários da ministra, conta como ela subitamente interrompeu a exposição de um deles: -Meu filho, não pode ser assim. Meu filho, deixa eu falar. Não são poucos os que vêem nessas atitudes uma das principais qualidades de Dilma.

Graça Guindani, 57 anos - ex jornalista em Porto Alegre, e que se dedica hoje a atividades em uma pequena propriedade rural em São Borja -, foi companheira dela antes e depois de 1986 a 1988, período em que a atual ministra foi secretária da Fazenda no Rio Grande do Sul, e depois secretária de Energia, Minas e Comunicações do Estado, nos governos de Alceu Collares (PDT) e Olívio Dutra (PT). - Durona? - pergunta Graça, e logo responde: - Depende do ponto de vista. Ela é muito exigente consigo própria e Com todos os que trabalham com ela. Ela trabalha e exige trabalho - isso é ser durona? Para mim, não.

Mas naquela época de que nos falava Dilma Rousseff mãe, a época da filha no Colégio Sion, essa personalidade que se formava significava um problema. A nota 5 de comportamento, lembram-se? - Por causa disso ela nunca recebia o 'fitão', recorda a mãe.

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E o que era o 'fitão',senhora?

Uma faixa transversal que se colocava No peito, uma honra só destinada aos melhores alunos, aos mais comportados, e Vinha como boletim escolar.Em vez disso, Dilminha só recebia as críticas por falar muito, perguntar muito, e a recomendação que vinha para nós, pais: Dilma pode render mais. Um dia o pai a chamou como boletim Nas mãos.Explicou-lhe que as freiras poderiam cansar-se dela, e mandá-la procurar outro colégio. E acrescentou que isso para ele não seria problema,porque a colocaria em outra escola,masque para ela ficaria muito mal. -E não é que ela conseguiu o 'fitão'? - conta a mãe. 

Mas como?

Sei não, mas a choque deve ter se esforçado para não falar tanto, né? Mas olhe, foi a única vez.

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E quando foi que a senhora soube que ela estava envolvida com a política?

Foi o maior susto da minha vida. Era o ano de l967, o pai havia morrido em 62, Dilma Vana Rousseff cursava a Escola Federal de Economia em Belo Horizonte, Tinha 20ano se apaixonou-se pelo colega Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, 25, nascido em Ferros, Minas Gerais, que militava no movimento Política Operária, Polop. Cláudio convenceu Dilma a aderir à Polop, e mais tarde os dois passaram a fazer parte do Comando de Libertação Nacional, Colina, que depois viria a se fundir com a Vanguarda Popular Revolucionária, dando origem à VAR-Palmares, organização que teve como líder maior o capitão fugitivo do Exército Carlos Lamarca. Mas, em Belo Horizonte, Dilma e Cláudio ainda estavam na Polop quando... -Um belo dia - lembra Dilma mãe - li No jornal que havia um movimento político entre os estudantes, que havia estudantes presos, e qual não foi o meu espanto quando soube que Dilminha estava fazendo política com o marido - naquele tempo eles já tinham se casado. Dilma passara então a chamar-se Dilma Vana Rousseff Linhares, nome como Qual veio a enfrentar os vários inquéritos e teve, mais tarde, a prisão decretada. Desde os tempos do ginásio a garota Dilma costumava reunir colegas em sua casa para estudar. A mãe conta que a casa era grande, tinha um quadro- negro, e o pessoal se reunia ali. Isso continuou depois, na época da faculdade, ela achava tudo muito normal. Já o irmão de Dilma, Igor Rousseff, hoje com 59 anos, notou que havia alguma coisa acontecendo: - Eu percebi que não era só estudo, que estavam tratando de alguma outra coisa, mas não me intrometi, nada daquilo me interessava.

Mas como a senhora soube?

Você sabe - responde ela - nos tempos Do governo Jango Goulart, até passar para os militares, Havia muita coisa acontecendo, mas como é que eu, uma simples dona de casa, que não gostava de política nem me interessava por política, ia saber dessas coisas? Aí eu soube, em 1967, que Dilma e o marido estavam metidos com política, e que ele já havia sido preso antes, na época do golpe.

Mas alguém contou para a senhora?

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Não, eu soube assim sozinha mesmo, e foi crescendo meu entendimento, porque a cada dia que, na pele, a gente vai sentindo o problema, acaba sabendo mais depressa do que precisa. Basta doer na pele que você entende em qualquer língua. Aí começou o calvário. Com o DOPS agindo contra os estudantes a situação foi ficando cada vez mais difícil para o casal, que começou a rarear suas idas à faculdade. Até que, no final de 68, início de 69, Cláudio resolveu fugir para o Rio. Alguns dias depois, como lembra a senhora Dilma, a filha também desapareceu de Belo Horizonte. Foi bem na hora, porque no dia 18 de março de 1969 o 2º tenente do Exército Carlos Alberto Del Menezzi batia à porta do apartamento 1.001 do Condomínio Solar, na Avenida João Pinheiro, 85, a casa dos Linhares.No auto de busca e apreensão que apresentou o tenente registraria: "procedemos à mais minuciosa busca, examinando todas as salas, quartos e lugares, fazendo abrir portas, gavetas, armários, etc., e aí encontramos os seguintes objetos: os livros Torturas e Torturados, de Márcio Moreira Alves; Vietnã do Norte, de Wilfred G. Burchet; Paz eTerra, da Editora Paz e Terra Limitada, nº 7; O Mundo da Espionagem, de Ladislas Farago; Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, deCelso Furtado;A História da Revolução Russa, de Leon Trotski;Revolução Brasileira, de Caio Prado Júnior; Cultura e Revolução Cultural, de Lênin; Revolução e o Estado, de Fidel Castro; Militarismo e Política na América Latina, deE.Lieuwen e outros; Quais São Os Inimigos Do Povo, de Theotônio Júnior; e Canudos -Guerra Santa no Sertão, de José Oliveira Falcón". Havia ainda uma relação de revistas, de material de trabalho, de pastas de 'Contas Pagas' e 'Contas a Pagar', entre outros objetos. Embora tenha recebido treinamento militar - em lugar que não revela - e saiba atirar, apesar de não ter vista boa, a guerrilheira urbana Dilma Rousseff não participava das ações armadas. Mas trabalhava no planejamento delas - no Rio foram três assaltos a bancos e a mais ousada e bem-sucedida operação militar da esquerda brasileira, o roubo de um dos cofres da amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, Anna Gimel Benchimol Capriglione. No cofre estavam mais de US$ 2, 5 milhões. Dilma, quando no Colina, tornou-se uma dirigente e esteve em dois congressos considerados históricos: o d eMongaguá, em São Paulo, quando o Colina e a VPR fundiram-se na VAR-Palmares, e no de Teresópolis, Rio, no episódio que se tornou conhecido como 'racha dos sete', como esfacelamento da organização e Lamarca saindo para dedicar-se à guerrilha rural. Dilma permaneceu na VAR. Ela se separou do marido, que seqüestrou um avião e foi para Cuba - consta que vive hoje na Nicarágua-e ligou-se ao militante da VAR Carlos Franklin Paixão de Araújo, advogado e ex-deputado estadual pelo PDT do Rio Grande do Sul. Os dois tiveram uma filha, Paula Rousseff Araújo, agoracom27anos, procuradora do Trabalho. Dilma separou-se também de Carlos. Antes do nascimento de Paula, entretanto, No auge da luta entre os guerrilheiros armados e a ditadura, Dilma foi presa em São Paulo, no dia 16 de janeiro de 1970.

Celso Junior/AE 

E como é que Dilma mãe ficou sabendo da prisão da filha?

Primeiro eu soube que ela estava no Rio, mas se comunicava muito pouco comigo, Talvez por medo de me comprometer, com medo de que perguntassem alguma coisa que eu não sabia. Mas eu praticamente não fui incomoda da pelos militares. A não ser uma noite em que vieram procurar meu genro. Eles bateram de madrugada e avisaram: 'É a polícia'. Então pensei: será que tem algum ladrão aqui dentro?... Imagina a minha inocência. Quando abri a porta eles foram entrando, aquele monte de homem armado, cheios de metralhadoras. Eu não entendi, parecia que estava no ar, assim. Então fui mostrando a casa toda, abrindo as portas, até que a gente chegou no quarto da empregada, que naquele tempo ficava fora da casa. E ela estava lá, com as coisas que tinha comprado para levar para a família, umas coisas dentro de uma caixa em cima do armário. Eles disseram para ela abrir a caixa, e ela perguntou: o que foi que a dona Dilma disse que eu roubei? 'Não, eu disse, esses senhores querem saber o que você tem aí dentro, mas não é porque você roubou, não'. Eles olharam, não tinha nada, e ela saiu gritando 'ai, quanta metralhadora', e eu estava mais apavorada que ela. Acho que fiquei umas quatro horas em choque, assim só de susto. Mas choque parada, não chorando e clamando não. Aí comecei a entender que estava acontecendo alguma coisa muito ruim.

Mas e a prisão, quando soube da prisão?

Eu soube porque nesse tempo a gente tinha uma parenta, o mesmo que uma tia, que era muito política, casada com um coronel médico.Ela dizia que passou por toda a política sem nunca cair da política, porque ela não entrava, ficava só amiga de todos. Ela era amiga do Juscelino, que foi padrinho de casamento dela. Então ela tinha um amigo que era coronel, o coronel Cúrsio, e ele veio me avisar, a pedido dela, disse que a Dilma tinha sido presa em São Paulo. Ela disse pro coronel me dizer que estava presa, mas que não tinha perigo, que não estavam torturando - coitado do coronel, nem sabia direito. A senhora Dilma conta que foi a última vez em que viu aquele coronel. 'Ver pra quê?', pergunta.Naquela época, lembra, ninguém poderia ajudar em uma situação assim, e ela não pediu ajuda nem para um primo que era do Exército.'Que adiantava eu ir lá chorar pra ele? Entendi que era uma coisa de que eu teria que sair sozinha'.Dilma, ela conta, ficou muito tempo incomunicável, os jornais só relataram a prisão mais tarde, e só foi procurar a filha um mês depois. A prisão foiem16 de janeiro; a notícia só apareceu no jornal O Estado de S. Paulo no dia 28 de janeiro, sob o título 'Estão presos mais 320 homens do terror', em que se registrava a descoberta de 66 'aparelhos' (locais em que os guerrilheiros se escondiam) e apreensão de 33 metralhadoras, 70 fuzis, 68 revólveres, 60 sabres, 20 carabinas, 180 bombas E farta munição. Da  relação de prisioneiros, listada pelo jornal, constava "Dilma Vana Rousseff Linhares, 'Luiza', chegou a esta capital em dezembro último, vinda de Belo Horizonte com a missão de reestruturar a VAR-Palmares. É esposa de Cláudio Galeno Linhares, vulgo'Lobato', terrorista que participou do seqüestro do avião da Cruzeiro do Sul, desviado para Cuba". - A gente ficou aliviada porque sabia que ela estava presa e não corria grande perigo.Porque se ela estava presa é sinal de que estava viva, de que eles não tinham matado. Ela conta que veio a São Paulo, com uma carta de apresentação que o coronel Cúrsio lhe dera, e ficou aqui um mês. - Não sei se o senhor lembra, mas naquela época os pais saíram da frente. Não se via pai procurando filhos, não, as mães é que iam lá.

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E a senhora conseguiu ver sua filha?

No dia que me apresentei eles me deixaram ver. Ela estava presa há um bom tempo, mas me deixaram ver quando cheguei.Foi no Dops, eu a vi no Dops.Ela estava bem magra, aquilo foi um impacto muito grande, ela bem magra, eu vi a realidade nua e crua, eu cheguei ao ponto de querer tapar os ouvidos porque qualquer coisa que eu ouvia eu achava que eram gritos, gritos de outros estudantes. Talvez nem fossem, mas a gente tinha aquele pavor de entrar lá.Pra mim aquilo foi o maior sacrifício. Ficando um mês em São Paulo, depois voltando a Belo Horizonte, e vindo visitar a filha nos fins de semana, El aconta que - depois que 'eles fizeram ela contar o caso do jeito que eles queriam' - bastava pedir autorização que a visita era permitida. Então trazia alimentos, roupas e até dinheiro. -Só que tinha que ser pouco, sabe, assim uns 50, acho que eram 50, mas tinha que ser pouco porque acho que eles tinham medo de eles darem para os vigias, ... acho que era por isso. E quem podia Dava comida, levava mais, que era distribuído pelas outras mães, porque tinha mães que não tinham condições de ter essa despesa, então a gente repartia. O senhor acredita que uma vez elas me pediram sete queijos? Então eu saí daqui de Minas Gerais levando sete queijos. Elas é Que cozinhavam, faziam a comida delas, e Aí tinha uma lista com tudo o que elas precisavam. Mas isso foi na Operação Bandeirantes, Oban, não no Dops. Em depoimento ao repórter Luiz Maklouf Carvalho, que prepara uma segunda edição de seu livro Mulheres Que Foram à Luta Armada, Dilma falaria de sua lembrança da Oban: - Eu me lembro de chegar na Operação Bandeirantes presa, no início de 70. Era aquele negócio meio terreno baldio, Não tinha nem muro direito.Eu entrei no Pátio da Oban e começaram a gritar'mata, tira a roupa, terrorista, filha da puta, deve ter matado gente'. E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho.Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro. Ela disse 'Xi, você está ferrada'. Foi o meu primeiro contato com o esperar. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada.E foi. Também estou lembrando muito bem do Chãod o banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando um acrosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro... Conta Dilma mãe: -Um dia eu cheguei à Oban levando a Minha cota de alimentos. Aí, quando cheguei lá, passei pela revista, eles revistavam a gente, e logo vi uma moça, que estava abraçando a mãe, me abraçou também, e disse: 'Levaram a Dilma, levaram de madrugada, toma providência'. Eu respondi que o embrulho ficava lá, eu não ia levar, e ela me recomendou que procuras se em Juiz de Fora, que procurasse no Rio.Eu disse para mim, vou procurarem Juiz de Fora, vou procurar no Rio. Quando foi de noite, tomei um ônibus pra ir pra Juiz de Fora, chamei o advogado dela, sentei num lugar que sobrava, ele sentou no outro, e eu estava só preocupada em achar ela, não sabia onde ela estava, mas ia achar. Aí, tem três pontos de parada, um em Aparecida do Norte, que não sei como chama o ponto, não. Desci, tomei um pouco de água, eu estava meio no ar também, e o senhor não imagina, quando eu olho assim e vejo ela com dois polícia federal, eu levei tanto susto, eu, que estava o dia inteiro procurando notícia dela, eu peguei minha identidade -o ônibus estava vazio, as pessoas já tinham descido, tomado seu lanche, já estavam voltando. Quando eu a vi, fiquei tão alvoroçada que eu gritei 'Eu sou a mãe dela, olha minha identidade, eu sou a mãe dela, onde é que vocês vão levar ela?', eu fiz aquele aparato lá, não era propriamente um escândalo, mas era susto. Perguntei muito, e o polícia federal estranhou, estranhou mas deixou eu abraçar, deixou tudo. Aí, quando eu fui entrar no ônibus, ela me abraçou, ela entrou, eu estava entrando e aí o polícia perguntou' Ela está no ônibus?'.Então o motorista respondeu 'Ela está no ônibus'. Eles não criaram objeção, não.Quando foi na outra parada - que tinha outra parada - eu disse pra eles assim: 'Eu quero só saber pra onde os senhores vão levar. Agora, o senhor não vai me levar ela e Sumir com ela, porque eu sou a mãe dela e estou co mela e não quero nada. Eu quero só saber aonde ela vai. Eu estou aqui atrás dela, desde ontem eu estou procurando ela'. Eles falaram 'A senhora quer tomar alguma coisa com ela, alguma bebida com ela?' Ela não aceitou. Mas dessa hora em diante, eles se tornaram mais acessíveis, viram que eu era a mãe dela, que eu não era subversiva, que eu não ia fazer nada. Aí, na próxima parada, eles desceram antes de mim, eram umas quatro, cinco da manhã.Eu disse 'Só me avisa, me diz onde o senhor vai deixar ela que amanhã eu estou lá'. Ele me falou que ia deixar em tal região militar, eu não sei bem, mas era Juiz de Fora, e eu disse 'De manhã cedinho eu estou lá pedindo visita'. E ele me disse 'Vou ver se está mesmo'. E foi mesmo, eles deixaram ela lá. Aí teve o julgamento em Juiz de Fora - ela foi pra esse julgamento - foi condenada, e eles me disseram que iam esperar o pedido de retorno. Eu só não queria que ela voltasse pra Operação Bandeirantes, porque diziam Que tinha muita tortura lá. Aí ela ficou nesse batalhão, sozinha, esperando que a levassem, e eu disse pra eles que ela estava muito magra e que eu queria trazer comida pra ela. E aí eu levei, comecei a levar um exagero de coisa.

Ela chegou a dizer que foi torturada?

Ela disse que jogavam ela muito. Eu Evitava conversar isso. Agente adivinhava, parece que era uma mãe que estava assistindo àquele drama todo sem ninguém contar, né? Só de ler no jornal a gente sabia. Sabe que eu não conseguia escutar aquele negócio de carro de polícia? Eu escutava assim, eu tinha pavor, a gente fica traumatizada.

Depoimento de Dilma ao repórter Luiz Maklouf Carvalho:

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-Mandaram eu tirar a roupa. Eu não tirei, porque a primeira reação é não tirar, pô. Eles me arrancaram a parte de cima e me botaram com o resto no pau de- arara. Aí começou a prender a circulação. Um outro xingou não sei quem, aí me tiraram a roupa toda. Daí depois me botaram outra vez.Maklouf:  Com choques nas partes genitais, como acontecia?

-Não, isso não fizeram.Mas fizeram choque, muito choque, mas muito choque. Eu lembro, nos primeiros dias, que Eu tinha uma exaustão física, que eu queria desmaiar, não agüentava mais tanto choque. Eu comecei a ter hemorragia.

Maklouf: Onde eram esses choques?

- Em tudo quanto é lugar. Nos pés, nas mãos, na parte interna das coxas, nas orelhas. Na cabeça é um horror. No bico do seio. Botavam uma coisa assim, no bico do seio, era uma coisa que prendia, segurava. Aí cansavam de fazer isso, porque tinha que ter um envoltório, pra enrolar, e largava. Aí você se urina, você se caga todo, você...

Dilma mãe:

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- Eu estava pouco agüentando aquela situação - se ela viesse me falar de tortura eu ia ficar louca. Nas primeiras vezes em que eu pegava o ônibus para ir ver a Dilma em São Paulo, quando eu saía daqui já saía chorando. Até que um dia eu pensei 'não posso continuar assim, não posso transformar minha vida num calvário'. Então resolvi: vou fazer de conta que vou passar um fim de semana em São Paulo. E pensava assim:'Vou passar um fim de semana em São Paulo, vou à Rua Augusta fazer compras, vou a tal lugar - só não pensava em cinema e teatro porque não tinha cabeça pra isso -, eu vou ver vitrine...' - o senhor sabe que melhorou um pouco?E de fato eu comecei a ir à Rua Augusta... era uma maneira de sair daquela coisa doentia que já estava na gente, porque a pior coisa que existe é a gente ter dó da gente própria, isso não adianta nada.

A senhora acha que ela sea rrependeu?

O senhor não pode usar essa palavra, não. Não existe isso. Existe a pessoa ver que fez uma confusão muito grande - o que é que o senhor acha melhor, o diálogo ou a briga? Com briga não resolve nada, então a gente tem que ir devagar, ver o que um pensa, o outro pensa, ...mas de peito aberto assim, radical? Eu acredito que não é arrependimento, é esclarecimento. Acho que ela foi esclarecida pelo que ela sofreu.

E como vê a Dilma hoje, uma das mulheres Mais poderosa deste País?

Eu não sei se é poderosa, mas eu vejo ela como uma grande lutadora, que luta pelo que acha que é certo, sem interesses pessoais- ela tem um trabalho muito grande, sempre querendo acertar, querendo ajudar. E ao menos um pouquinho está conseguindo, né? Mas eu não vejo ela como arrependida de forma nenhuma, eu vejo como uma pessoa que teve coragem, sofreu, pagou caro, muito caro, ... eu nem sei como a Dilminha ainda temc abeça, ainda consegue tanta força.

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A senhora vê a Dilma como presidente da República? Porque o Lula já chegou a falar nisso.

Eu nunca pensei nisso. O Lula fala, ele acha que ela tem competência, mas eu nunca pensei nisso. Acho que o povo é que tem que achar, né? Eu não acho nada. Tem tanta gente na frente querendo, Vai ser uma eleição difícil, tem tanto candidato...

E como é a relação de vocês hoje, ela telefona, Vem aqui?

Ainda na semana passada ela esteve aqui. Vem sempre me ver, vem ver minha irmã, Arilda, que é muito ligada a ela desde pequena. Assim que pode ela vem aqui e vai a Porto Alegre ver a filha. Eu não vou muito lá porque atrapalho: imagine a filha cheia de trabalho e a mãe lá dando trabalho. Dilma mãe e o período mais importante de sua vida: -Só a pessoa que passou o que eu passei é que pode falar nisso.O senhor pode supor, ... mas não pode falar que conhece. Porque para o senhor sentir esse sofrimento Ele tem que passar aqui, ó (e faz Um risco vertical na testa), o senhor sentir ele muito fundo, porque o sofrimento vem com o medo, o terror da gente ver o filho morto, torturado, chorando, gritando, e você não pode fazer nada. Então eu posso falar isso, porque e  me ajudei, ninguém podia me ajudar. Tive o conforto de parentes, minha irmã em São Paulo, meus irmãos, minha família, mas o que é que eles podiam fazer? Nada.

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