Se fôssemos um país normal, estaríamos hoje discutindo – como o Reino Unido fez em 2008, pós-crise financeira que ameaçou jogar a Inglaterra na insolvência – como redefinir nossa trajetória de gastos públicos. Como lá, o governo brasileiro estaria apresentando um amplo projeto de cortes de gastos e realocação de despesas de forma a garantir a normalidade da economia, o apoio aos mais pobres e a reversão da trajetória de colapso fiscal que a manutenção da tendência atual certamente nos destina.
Paralelamente, também como lá, estaríamos discutindo uma ampla reforma administrativa para modernizar a máquina pública, torná-la mais eficiente, menos cara e muito, muito mais voltada para o cidadão – e não para a sua autoperpetuação. Para quem acha que isso tudo é contraditório, basta lembrar que o programa de reequilíbrio fiscal inglês partia do princípio de que havia como cortar e realocar gastos de forma a preservar os mais pobres e melhorar os serviços públicos. E assim foi feito. A premissa (que se verificou verdadeira) era que havia desperdício, falta de foco, privilégios e gastos públicos (muitos!) com baixo ou nenhum impacto econômico e social. Não só soa familiar como é.
Na Inglaterra de Cameron, o programa de reequilíbrio fiscal foi definido, apresentado e implementado com objetividade e clareza. A conta foi feita de trás para frente, definindo-se o tamanho do ajuste de acordo com patamares de endividamento que eliminassem as desconfianças quanto à solvência da dívida inglesa.
O programa foi inicialmente desenhado para cinco anos, monitorado nos seus indicadores. O objetivo de corte foi alcançado no tempo, desenhando uma trajetória de gastos que trouxe de volta a confiança dos agentes econômicos, o investimento e uma melhora notável na qualidade dos serviços públicos.
Parte do sucesso na execução do ajuste inglês se deve ao estabelecimento de uma “star chamber”, um comitê em que os membros do governo eram obrigados a justificar seus orçamentos para um grupo ministerial e de servidores escolhidos a dedo. Ali, os gastos eram desafiados para que cada área do governo explicasse suas linhas de despesa e justificasse os valores. Além disso, cada um deveria avaliar como poderia fazer mais com menos – e melhor. Daí para uma ampla reforma administrativa que diminuiu em 25% o número de servidores foi um pulo. Era o único caminho para chegar a melhores serviços públicos gastando menos e valorizando o bom servidor.
Algumas lições emergem do programa inglês. A primeira delas se refere à irrefutabilidade dos dados. A Inglaterra chegou ao final da crise com um déficit de quase 10% do PIB e com trajetória de gastos crescente. Não havia outro caminho senão agir. As ações poderiam se traduzir em aumento de impostos ou corte de gastos. Optou-se pelo segundo, com transparência e comunicação claras. Não se desperdiçou a oportunidade da crise e entendeu-se que momentos de mudança estão aí para que mudanças profundas de curso sejam feitas.
Mas no Brasil, em vez de fazermos essa ampla discussão, explicitando a alocação dos gastos públicos, desafiando o Orçamento que tende a ser sempre a repetição do número do ano passado acrescido de algum porcentual, e definindo prioridades com o objetivo de buscar o desenvolvimento econômico e a redução da desigualdade social, o que fazemos é pressionar pelo fim do teto de gastos. Como se aumento de gastos fosse diminuir – e não ampliar – a atual ineficiência.
E a pressão vem também de dentro do governo, num diapasão que conhecemos muito bem: fura-se o teto para gastar com investimento público em infraestrutura e para criar um programa de transferência de renda universal e, porque ninguém é de ferro, para manter a trajetória crescente de despesas de pessoal e os benefícios fiscais intactos por mais alguns anos. E, claro, para garantir também a reeleição do presidente daqui a dois anos e meio, certo? Errado, porque o Brasil vai quebrar e todos terão uma conta para pagar. Os pobres mais que os ricos.
Mais gasto, no meio de tanto desperdício, significa que tudo continuará como está. Ou seja, os canais de distribuição estão aí para garantir que os recursos adicionais chegarão ao mesmo destino de sempre: aos mesmos grupos que se apropriam do Orçamento há décadas e que resistem bravamente à discussão distributiva e à correção de injustiças que levariam, invariavelmente, à redução dos seus privilégios.
Voltando à Inglaterra dos anos 2008 e aproveitando a discussão orçamentária deste ano, o governo brasileiro deveria seguir o exemplo britânico. Poderia estabelecer uma meta de ajuste fiscal de longo prazo, criar uma “star chamber” que rediscuta a divisão do Orçamento e exigir que cada área do governo defenda a sua parcela de gastos e explique como esses vão gerar mais emprego, mais renda e menos desigualdade social no Brasil.
Numa discussão como essa seria difícil defender que a Defesa deve receber mais recursos que a Educação, ou que salários de servidores devam representar 13% do PIB. Mas é numa discussão como essa, feita de forma clara, que se criam as condições para que as medidas fura-piso ganhem o espaço que hoje está sendo ocupado pelos fura-teto.
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA
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