O “vazamento” do Plano Pró-Brasil -- capitaneado pelo ministro Walter Braga Netto, da Casa Civil, com apoio dos ministros Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, e Bento Albuquerque, das Minas e Energia -- escancarou de vez as divergências existentes no governo em relação à agenda liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, especialmente sobre a melhor estratégia para tirar o País da pasmaceira no pós-pandemia.

A divulgação do plano, que está sendo preparado sem o aval da equipe econômica, mas com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, deixou evidente que uma ala poderosa da Esplanada dos Ministérios, formada principalmente pelos ministros militares, tem uma visão mais desenvolvimentista e defende uma participação mais ativa do Estado na economia, para turbinar o nível de atividade e o crescimento. Ainda mais agora, com o País mergulhado na recessão. Trata-se de uma posição que causa arrepios na equipe econômica, não apenas pela resistência ao envolvimento estatal na vida das pessoas e das empresas, mesmo em momentos de crise, mas também pela preocupação com o efeito que a liberação de recursos públicos em profusão, para aliviar os efeitos da pandemia, já terá nas finanças públicas, no comportamento dos juros e no desempenho da economia no médio e no longo prazo.
Neste cenário, qualquer que seja o formato final do plano -- que prevê investimentos públicos de R$ 30 bilhões a R$ 50 bilhões e até o relaxamento do teto de gastos, além de projetos de concessões e parcerias público-privadas -- o estrago está feito. Sua mera articulação, à revelia da equipe econômica e com a anuência de Bolsonaro, coloca em xeque o papel de Guedes como superministro da Economia, a sua agenda de reformas e talvez até o seu “casamento hétero” com o presidente.
Ao que parece, o papel de Posto Ipiranga, atribuído a Guedes por Bolsonaro na campanha eleitoral, como forma de mostrar a confiança nele depositada, passou por um processo de esvaziamento. Muitos analistas chegam a questionar se Guedes não estaria passando pelo mesmo processo de “fritura” pelo qual outros ministros já passaram, insinuado desde que Bolsonaro adiou o envio ao Congresso das reformas tributárias e administrativa, no final do ano passado.
Privatização
O Plano Pró-Brasil -- apelidado de Dilma 3 pela equipe econômica, em razão de sua semelhança com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que drenou bilhões de reais em dinheiro público nos governos petistas e deixou como saldo uma série de obras inacabadas -- representa, porém, apenas o capítulo mais recente e talvez o mais quente de um conflito que começou muito antes de sua idealização. Desde o início do governo, surgiram divergências do grupo de Guedes com os ministros Albuquerque e Gomes de Freitas, por causa da resistência de ambos à privatização imediata de estatais, como a Valec, a EPL e a Infraero, ligadas ao ministério caso da Infraestrutura, e a Eletrobrás, vinculada ao ministério Minas e Energia. Agora, foi com Rogério Marinho que a contenda “pegou fogo” para valer.
Com a adesão entusiasmada de Marinho ao plano de retomada, a relação entre ambos, que já vinha esfriando há tempos, azedou de vez. Segundo integrantes da equipe econômica, Guedes disse a Marinho, numa mensagem enviada por WhatsApp, que ele “foi desleal” nesta questão. Internamente, batizou o plano, do qual seu ex-secretário teria sido o principal articulador, de “PAC do Marinho”. “Inimigos são pautas-bomba”, afirmou Guedes ao seu pessoal, conforme apurou o Estado.
Desde o ano passado, Guedes já vinha se queixando de Marinho, trazido por ele para o governo como secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, a amigos e aliados. Embora Marinho tenha desempenhado um papel relevante na aprovação de uma reforma robusta da Previdência, o ministro não o perdoa por ter deixado de lado a proposta de criar o sistema de capitalização para os mais jovens, que em sua visão geraria uma poupança de longo prazo para o País e viabilizaria fartos investimentos com o passar dos anos.
“Velha Previdência”
Na visão passada por Guedes a seus auxiliares mais próximos, Marinho abandonou a ideia da “nova Previdência”, que ele pretendia criar, e se concentrou em reformar a “velha Previdência”, que ele gostaria de ver gradualmente substituída pelo novo sistema. Guedes também não perdoa Marinho por ter descaracterizado o projeto da Carteira Verde-Amarela, ao transformá-lo em opção para a contratação de jovens, em vez de apresentá-lo como alternativa a todos trabalhadores, para reduzir o custo trabalhista das empresas em todas as faixas e ampliar o investimento na produção e a geração de novos empregos, como previa a proposta original.
A questão é que Marinho, cujas ideias nunca estiveram alinhadas com o liberalismo de seu ex-chefe, pode ter se indisposto com Guedes. Mas, pelo jeito, caiu nas graças de Bolsonaro, que o alçou ao cargo de ministro e passou a ouvir seus conselhos com atenção. Além do plano Pró-Brasil, que está no prelo, Marinho conseguiu emplacar a ideia de usar os recursos do FGTS para alavancar o Minha Casa, Minha Vida nos mesmos moldes dos governos do PT -- um modelo que Guedes desejava mudar.
Como vai terminar esta novela, é difícil dizer no momento. O que se pode afirmar desde já é que tudo isso gerou muita insegurança no mercado quanto à permanência de Guedes no governo. Pelos pendores históricos de Bolsonaro, que antes de fazer seu “casamento” com Guedes marcou sua trajetória política por posturas corporativistas e pela defesa do desenvolvimentismo da era militar e da intervenção estatal na economia, não será uma surpresa se ele tiver uma “recaída” e deixar para trás o liberalismo de ocasião que abraçou para viabilizar a sua eleição.