Por que os aposentados argentinos são os que mais sofrem com o ajuste fiscal de Javier Milei

Da redução do déficit fiscal, 20% ocorreu com redução de aposentadorias, segundo consultoria; para Milei, a melhor política social é o equilíbrio fiscal

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Foto do author Luciana Dyniewicz
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A argentina Liliana Carci, de 70 anos, cortou produtos lácteos de suas compras mensais há pouco mais de um ano – quando a inflação mensal alcançou 20,6% e as aposentadorias não foram corrigidas. “Antes a gente podia comprar queijo, iogurte. Agora, não dá mais. Carne de vaca também trocamos por frango”, diz ela, que recebe aposentadoria mínima: 279 mil pesos (R$ 1.534) mais um abono de 70 mil pesos (R$ 385). A renda total de 349 mil pesos a coloca muito pouco acima da linha de pobreza, definida em 334,5 mil pesos.

“Com esse valor, ninguém vive”, diz Carci. “Essa situação de a aposentadoria ser muito baixa não é nova. Mas, com a chegada de Javier Milei à Presidência, tudo piorou muito e nos tiraram até os remédios gratuitos”, acrescenta.


Aposentados protestaram, no último dia 26, no centro de Buenos Aires, por aumento em seus benefícios Foto: Luis Robayo/AFP

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No caso de Carci, até agosto, ela recebia do Instituto Nacional de Serviços Sociais para Aposentados e Pensionistas (PAMI, na sigla em espanhol) um medicamento para controlar o nível de ácido úrico que custa o equivalente a R$ 110. Ao menos 44 remédios deixaram de ser distribuídos gratuitamente na Argentina. Segundo o governo, pessoas com renda inferior a 388,5 mil pesos podem ter acesso a eles mediante inscrição em um programa especial. Carci, no entanto, afirma não ter conseguido o medicamento.

“Eu pedi ao PAMI para continuar tendo acesso ao remédio, mas me foi negado. Nossa situação (dos aposentados) é crítica”, diz Carci.

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Os aposentados formam o grupo que mais sofre o aperto fiscal promovido pelo governo do presidente Javier Milei. Segundo a economista Elisabet Bacigalupo, da consultoria Abeceb, 20% da redução do déficit ocorreu penalizando as aposentadorias e 12%, os gastos sociais.

Milei foi eleito em 2023 tendo uma motosserra como símbolo de sua campanha. Ela representava o corte que ele prometia para os gastos públicos. O presidente cumpriu sua promessa e, no ano passado, após realizar esses cortes, conseguiu que o país registrasse um superávit primário de 1,8% do Produto Interno Bruto (PIB). No ano anterior, a Argentina tinha tido um déficit de 4,4% do PIB.

Liliana Carci, aposentada argentina: 'Nossa situação é crítica' Foto: Arquivo pessoal

O aperto fiscal, porém, acabou deteriorando a situação financeira dos aposentados. Em abril de 2024, o governo de Milei mudou a fórmula de reajuste dos benefícios, que passaram a ser atualizadas a cada dois meses, e não mais a cada três meses, como ocorria até então. Quando essa mudança foi feita, entretanto, a inflação de janeiro – a mais alta daquele ano – acabou não sendo totalmente reposta.

“Oito pontos de inflação não foram reconhecidos. E isso se arrastou durante todo 2024″, explica a economista Melisa Sala, da consultoria LCG. Ela acrescenta que uma lei foi aprovada no Congresso em agosto para recompor essa perda, mas o presidente a vetou em setembro.

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Sala conta ainda que, antes de Milei, o abono concedido aos que recebem o valor mínimo da aposentadoria (70% dos aposentados) era reajustado conforme a inflação, o que deixou de acontecer. Com essa alteração, o abono passou a representar 26% da renda do aposentado que está na faixa mais baixa do benefício. Antes, chegava a 52%.

Bacigalupo, da Abeceb, pondera que, com a inflação desacelerando, a situação dos aposentados tem melhorado na margem, mas não o suficiente para recuperar as perdas. Segundo a economista, os aposentados recebem hoje 22,9% a menos do valor registrado em janeiro de 2022 e 29,2%% a menos do de janeiro de 2017.

‘Melhor política social é o equilíbrio fiscal’

Apesar dos problemas sociais, do ponto de vista econômico, o choque provocado por Milei tem obtido bons resultados e recebido elogios mundo afora. Além de registrar superávit nas contas, o presidente conseguiu reduzir a inflação de 211% em 2023 para 117,8% em 2024 - ainda alta, mas em trajetória descendente.

Milei já afirmou, em postagem no X no ano passado, que “a melhor política social é o equilíbrio fiscal, com pressão fiscal descendente, e uma política monetária que termine com a inflação”. Usando um termo que costuma utilizar para se referir aos parlamentares que insistem em aumentar gastos e evitar cortes no Orçamento, ele afirmou: “Os degenerados fiscais, com seu amor pelos mais pobres e suas ações, só os multiplicam.”

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Em entrevista ao Estadão no final de janeiro, o economista Fabio Giambiagi, filho de argentinos e que passou a infância no país, disse que a melhora, mesmo no que se refere a indicadores sociais, é visível. “Estive na Argentina em janeiro de 2024 e agora. A diferença social é da água para o vinho. Havia uma situação de enorme emergência um ano atrás e agora a situação está mais tranquila”, afirmou. “A pobreza era muito alta no fim do governo de Alberto Fernández, ao redor de 40%, e deu um salto na mensuração de junho passado, que foi divulgada em setembro, para mais de 50%. É chocante, considerando que o país em que eu me criei tinha 5% de pobreza na minha infância, nos anos 60.”

Mas, segundo ele, é razoável dar o benefício da espera para o governo, principalmente considerando a defasagem dos indicadores. “Era natural que o choque causasse, em um primeiro momento, um aumento da pobreza, por mais que ele tenha sido muito elevado. Mas também é razoável imaginar que, na mensuração de dezembro – que vai ser conhecida em março –, haverá uma queda. Essa mensuração segue outros indicadores. Por exemplo, os salários: houve perda inicial grande, mas eles já estão em recuperação. A expectativa é que haja uma queda na pobreza.”

A dúvida, de acordo com o economista, é em relação à sustentação. “O que está se perfilando é o tipo de modelo em que o governo consegue sucesso em alguns indicadores, mas associados a crescimento vigoroso de alguns setores que não são muito empregadores de mão de obra, como petróleo e mineração. A dúvida é até que ponto isso se espalha para a economia e até que ponto a estabilização gera um dinamismo grande. No caso brasileiro, o efeito da queda da inflação na recuperação da atividade foi modesto. Agora a Argentina pratica um discurso de que basta estabilizar para a economia ser dinâmica. Ela crescerá muito em 2025. Isso está praticamente dado. Mas qual será o ritmo posterior ainda é uma interrogação.”

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