Todo desastre impõe escolhas difíceis às vítimas. Ainda mais quando ocorrem tragédias imprevisíveis, como o tsunami japonês em março de 2011 ou a loucura desenfreada do norueguês Anders Breivik, que matou a esmo 77 pessoas. São casos que vão além da habitual insanidade humana, dos soluços de sempre do planeta. Em casos assim, primeiro se socorrem os infortunados. Depois, hora da reconstrução. E correndo por fora, os mais chatos e insistentes reclamam por mais prevenção. Afinal, não se pode negar que uma crise imprevisível perde este adjetivo depois da primeira vez.
A crise financeira de 2008 entra nessa lista. Ninguém esperava a devastação no mercado de crédito causada pelo cassino de papéis podres lastreados em sucessivas hipotecas concedidas a pessoas que não tinham dinheiro para pagar. Quando o Lehman Brothers foi à lona, o Grupo dos 20 e os bancos centrais trataram de aplicar gaze e anti-séptico nas feridas, evitar que os defuntos contaminassem os vivos e entubaram algumas instituições e países no sistema de terapia intensiva: respirariam por aparelhos por um bom tempo.
Veio a lenta reconstrução, com governos lançando propostas legislativas para evitar uma nova hecatombe, algumas bem controversas como a nova regulamentação financeira cuja implantação começou na semana passada nos Estados Unidos.
Em terra brasilis, onde fingir surpresa com os problemas de sempre está no DNA da classe política desde Cabral, o marinheiro, a banda tocou uma melodia diferente. Agora que a crise internacional começa a se dissipar aqui e ali, quando governo e empresários torcem para um desempenho melhor de Estados Unidos, uma desaceleração menos brusca na China e a saída da União Européia da UTI, começa a fazer muita falta uma rota segura para evitar problemas no caminho. Em vez de placas de alerta, radares contra alta velocidade e quebra-molas, optou-se por avacalhar os equipamentos que estavam ali ou mesmo esburacar boa parte do caminho à frente.
A bem da verdade, houve problemas antigos e repisados que foram encaminhados. A previdência do setor público tende a apresentar melhora com a aprovação do Funpresp, um fundo para equacionar o déficit de sempre. A onda de privatiza... ops, concessõ... ops... A onda de investimentos privados em logística deve ser saudada, faz bem quando todos os partidos do espectro político admitem que o Estado não consegue se propor a fazer tudo sozinho sem cobrar um preço amargo nos impostos.
Os lampejos de eficiência, porém, não vão muito além disso. E a balança pende para o outro lado, a transmutação de virtudes em defeitos. Se toda crise traz oportunidades, faltou aproveitar algumas das melhores. Alguns cavalos selados cruzaram a Esplanada sem mover sobrancelhas em gabinetes ministeriais. O Brasil, tudo indica, deve passar por essa crise sem recessão anual, gerando novos empregos e recebendo investimento estrangeiro, mas privilegiando o curto prazo.
Em vez de mudar a estrutura dos impostos, que dificultam investimentos e tornam tudo no Brasil mais caro que lá fora, o governo atuou no pinga pinga, reduzindo IPI de bens de consumo para manter eleitor... Digo, consumidores satisfeitos. Em vez de uma reforma das leis trabalhistas que datam da primeira metade do século passado ou das travas à criação de empresas ou de uma reforma política ou de um corte das redundâncias do sistema judicial, o governo Dilma Rousseff jogou todo o capital político na aprovação tardia de marcos regulatórios que não param de dar problema. Na aprovação de dezenas de medidas provisórias para ajudar setores específicos da economia e pacotes que seguraram o PIB na faixa dos 2%-3% de crescimento nos melhores momentos.
Resultado da política econômica: o desempenho comercial com o exterior naufragou neste ano, o que era sobra virou falta. Os importados conseguem ganhar mercado no País seja qual for a cotação da moeda norte-americana, porque os preços nacionais sobem sempre mais. A aposta de que a crise baixaria os índices de preços, trazendo ventos desinflacionários, foi arriscada e se revelou equivocada, com a inflação brecando ainda mais o crescimento neste ano. A credibilidade do Banco Central, construída por anos a fio sofreu nocaute. E quando se brinca com a credibilidade do Copom, a consequência previsível traz mais juros e menos crédito.
Foi quando o genovês Guido Mantega, do cume do Ministério da Fazenda, admitiu que a economia crescia com "duas pernas mancas". Curioso, vindo de quem desmontou de forma convicta o tripé macroeconômico que dava estabilidade e credibilidade ao País durante todo o governo Lula. Estaria o ministro fazendo uma autocrítica? Não. Era aquela história, quando vai tudo bem é porque a política é sólida. Quando azedam os números, culpa da crise.
Dá um certo arrepio quando o governo, qualquer que seja ele, resolve conduzir com sua mão forte a economia. Injetando bilhões no BNDES, escolhendo a dedo quais empresários merecem pagar menos imposto, fechando a economia e encarecendo ainda mais o país, lançando dezenas de pacotes sem resultado aparente. Não seria de surpreender, portanto, quando o condutor, depois de substituir os eixos e as rodas, tenta descartar também airbag e freio ABS. Somando o conjunto da obra, o sujeito tem duas opções: pode buscar uma nova carona. Ou abaixar os vidros and enjoy the ride.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.