‘Eduardo Guardia era um economista super completo dentro da nossa geração’, afirma Ana Paula Vescovi

Trajetória e legado do ex-ministro da Fazenda são lembrados em um livro que conta com a participação de nomes de relevância do debate econômico do Brasil

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Foto do author Luiz Guilherme  Gerbelli

Foto: Werther/Estadão
Entrevista comAna Paula VescoviEconomista-chefe do banco Santander. É uma das organizadoras do livro em homenagem a Eduardo Guardia

A trajetória e o legado do ex-ministro da Fazenda Eduardo Guardia são lembrados em um livro que conta com a participação de nomes de relevância do debate econômico do Brasil. Guardia faleceu aos 56 anos, em abril de 2022.

Então secretário executivo, Guardia assumiu o posto de ministro da Fazenda no final do governo de Michel Temer no lugar de Henrique Meirelles, que deixara o posto para disputar a eleição presidencial de 2018. No cargo, lidou com a greve dos caminhoneiros, um dos momentos mais críticos enfrentados pela economia brasileira nos últimos anos.

“O que me chamou a atenção na greve dos caminhoneiros foi que, além de algo inusitado de alguma forma, a gente foi entendendo aos poucos o que era o movimento, qual era o objetivo dele. Foram 17 dias ao todo de crise, 11 dias de greve. O que se destaca é que, nas reuniões, o Eduardo, já ministro, ia ao ministério, à Casa Civil, ao Planalto e voltava com propostas. Ele tinha soluções”, afirma Ana Paula Vescovi, economista-chefe do banco Santander e uma das organizadoras do livro.

Os outros organizadores do livro Estado, economia, desafios fiscais e reformas estruturais no Brasil - Textos em homenagem a Eduardo Guardia são o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan e a economista Ana Carla Abrão. Em São Paulo, a noite de autógrafos ocorre nesta quarta-feira, 9, a partir das 18h, na Livraria Travessa do Shopping Iguatemi.

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O time que se reuniu para homenagear o legado de Guardia é composto por Edmar Bacha, Gustavo Franco, Marcos Lisboa, Marcos Mendes, Armínio Fraga, Mário Mesquita, Maílson da Nóbrega, Murilo Portugal, Elena Landau, Mansueto Almeida, Paulo Hartung, Persio Arida, entre outros.

“O livro é um emblema de uma fase da política econômica e, talvez, a gente tenha conseguido perenizar com essa homenagem. Demonstra para o Brasil o que dá certo, porque a gente teve esse contexto da responsabilidade fiscal, essa preocupação em construir instituições e fazer o diálogo político, que é super complexo”, afirma Ana Paula, ex-secretária de Tesouro e colega de Eduardo Guardia no Ministério da Fazenda.

Guardia teve uma carreira bem sucedida no poder público e na iniciativa privada. Foi secretário do Tesouro em 2002 e secretário da Fazenda do Estado de São Paulo na gestão de Geraldo Alckmin. No setor privado, foi diretor executivo da BM&F Bovespa - atual B3 e sócio do BTG Pactual.

A seguir trechos da entrevista.

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O que motivou a decisão de organizar o livro?

Todos, obviamente, sentimos muito o falecimento precoce do Edu. Tudo começou com uma homenagem que a Casa das Garças organizou, pouco depois do seu falecimento, convidando vários dos associados, os amigos do Eduardo, e a esposa. Cada um deu um depoimento, todo mundo muito emocionado. As pessoas que estavam se manifestando, na hora de fazer os seus depoimentos, iam colocando pequenas conexões dos seus momentos de vida e trabalho com a própria história profissional do Eduardo. Isso, de alguma forma, inspirou − acho que a iniciativa foi do ministro Malan − a ideia de ter um livro organizado com textos que pudessem, mais do que homenagear o Edu, mas configurar uma era da política econômica no Brasil. Foi disso que a gente tratou no final das contas: como o Eduardo transitou por esse período e como ele foi realmente uma figura importante e ilustrativo dessa fase.

O livro é um emblema de uma fase da política econômica e, talvez, a gente tenha conseguido perenizar com essa homenagem. Demonstra para o Brasil o que dá certo, porque a gente teve esse contexto da responsabilidade fiscal, essa preocupação em construir instituições e fazer o diálogo político, que é super complexo. Nós, economistas, não aprendemos isso na academia. A gente aprende na execução, na liderança e nas funções do setor público. Foi uma fase muito importante. O Brasil estabilizou a sua moeda, conviveu com taxas de juros baixas por muito tempo, teve a inflação sob controle, incluiu muitas pessoas na classe média. Isso permitiu que a gente trouxesse políticas sociais inovadoras, permitiu que a gente melhorasse o ambiente de negócios.

E o que é possível dizer do legado do Eduardo?

Eu fiquei incumbida de fazer a amarração desses capítulos, desses temas e costurar essas participações à luz da carreira do Eduardo. A minha principal conclusão é que ele foi um economista super completo dentro da nossa geração. Começou a vida acadêmica com o insight que ajudou muito na formulação do Plano Real. Ele veio para o governo, acho que muito por conta dessa contribuição. Ajudou na formulação do programa de renegociação das dívidas dos Estados e no ajuste fiscal em si, porque era na época em que o Brasil firmou acordos com o FMI. O FMI vinha acompanhar, a cada três meses mais ou menos, a condição dessas metas. E uma das proposições do acordo foi a formulação de uma Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso nos traz aqui a visão de que ele também ajudou a construir essas instituições voltadas para essa política econômica pró-estabilização e pró-crescimento sustentado do Brasil. Não foi só o ajuste, a execução dele, mas também a edificação dessas instituições.

Mas, além dessa carreira pública, o Eduardo foi um executivo de sucesso no setor privado. Ele cresceu na carreira privada. Primeiro, em algumas gestoras de recursos. Também ajudou no projeto de criar a B3. O Guardia tem essa figura de um economista que saiu do setor público e foi um executivo e um líder de sucesso dentro do setor privado.

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Vocês entram no governo num momento de crise aguda. Como se deu essa chegada?

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Foi um momento ímpar na história recente, porque foi um governo que veio depois de um impeachment. O Brasil estava numa crise histórica. Foi a maior crise da história econômica contemporânea do País de que se tem registro. A queda da renda foi de 7% em dois anos. Foi um processo de perda de atividade econômica muito contundente. Isso começou em 2015, e nós entramos em 2016. Entramos ali com uma tese central de que a gente só vai conseguir sair da crise se fizer o ajuste das contas públicas, porque foi uma crise acionada por perda de confiança fiscal, perda do grau de investimento. E aí vem a história do teto de gastos e, além de reformas que a gente foi empreendendo, como, por exemplo, a trabalhista.

Todas as reformas eram muito difíceis de organizar e de coordenar politicamente. Nós éramos liderados pelo ministro Meirelles. Também houve muitas medidas de melhoria de ambiente de negócio. A Lei das Estatais foi aprovada, e houve a sua implementação em várias companhias. O Eduardo foi um articulador extremamente importante desse processo. Mudou-se a governança das empresas públicas, e várias delas passaram por um saneamento, em que o Tesouro e o Ministério da Fazenda fazem, obviamente, boa parte dessa coordenação. Houve também momentos interessantes. No final, eu me lembro que Eduardo ofereceu para a transição de governo (para Jair Bolsonaro) a possibilidade de a gente apoiar a aprovação da reforma previdenciária que já estava lá. Era esse tipo de ação é de quem pensa no Brasil acima de tudo. Ele era realmente um economista que pensava o Brasil, até pelo lado do setor privado.

Eduardo Guardia, ex-ministro da Fazenda Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

E qual era a importância do papel do Eduardo no governo Temer?

Eu cheguei um pouco antes do Eduardo. O nome dele ainda estava em negociação, digamos assim. Foi um reencontro, não só para mim, como para outros colegas. Nós vimos, de imediato, a capacidade dele de liderar esse time, de coordenar dentro de uma pauta que nós todos estávamos muito fechados. A gente acreditava muito no que estávamos fazendo. Ele era um secretário executivo muito discreto. Era, efetivamente, um coordenador do time. Ele arredondava as bolas para o ministro Meirelles. Fazia as pautas acontecerem. Era sempre muito disciplinado. Tinha uma característica muito interessante em relação a essa disciplina do trabalho: chegava no horário mais cedo, saía no horário mais ou menos programado, mas sempre depois de resolver todos os temas do dia. Ele praticava esporte antes de chegar ao ministério; às vezes, deixava algumas reuniões mais para de noite, porque já tinha saído. Ele tinha uma disciplina que ajudava a gente na nossa própria programação.

Poderia detalhar um pouco mais como era a rotina com o Eduardo?

Eu, por exemplo, tinha um hábito de duas ou três vezes por semana despachar com ele no final do dia. Então, eu mantinha uma atualização dos temas e já pegava algumas orientações, porque ele também estava lidando com outros temas laterais. E tínhamos reuniões de coordenação. Geralmente, às terças-feiras, o ministro convocava essa reunião de coordenação. Fazíamos todos juntos. Às vezes, nessa reunião de coordenação, a gente conversava com o Banco Central sobre os temas de conjuntura. O Banco Central queria ouvir a gente sobre como é que nós estávamos vendo a conjuntura; a gente também queria ouvir o BC. A gente tinha uma relação, até porque o Meirelles tinha transitado pelos dois lados, institucionalmente clara e apartada, mas existia uma preocupação de coordenar a política fiscal com a política monetária. Isso era muito forte. Esses ideários permeavam a nossa relação de uma forma muito leve, natural, porque a gente tinha questões críticas para resolver na relação com o governo, na relação com o Congresso, com as companhias públicas. Essa leveza havia entre nós por meio dessa coordenação bem efetiva do Eduardo e dessa relação muito próxima que ele tinha com o ministro e da respeitabilidade que tinha com o presidente. E hoje eu vejo como isso é importante, porque a gente conseguiu manter um foco muito grande no que era a própria execução da política econômica. Ele tinha uma relação excelente com o Ilan (Goldfajn, presidente do BC na gestão Temer), um respeito mútuo muito grande. E a gente tinha uma confiança muito grande de que essa coordenação técnica entre política fiscal e monetária visava a um equilíbrio ótimo da política econômica, para poder recuperar a economia. Por vários momentos, a gente passou por crises e juntamos os times para poder dialogar sobre a melhor saída, a saída mais consistente para aqueles momentos.

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E um desses momentos de crise foi a greve dos caminhoneiros…

O que me chamou a atenção na greve dos caminhoneiros foi que, além de algo inusitado de alguma forma, a gente foi entendendo aos poucos o que era o movimento, qual era o objetivo dele. Foram 17 dias ao todo de crise, 11 dias de greve. O que se destaca é que, nas reuniões, o Eduardo, já ministro, ia ao Ministério, à Casa civil, ao Planalto e voltava com propostas. Ele tinha soluções. Ele dizia: “Vamos colocar aqui as soluções que são viáveis, porque a gente precisa lidar com o que é factível, a gente precisa lidar com o tempo, porque o Brasil está parado.” E ele saiu com a solução. E me lembro dele também falar assim: “Eu deixei claro que eu tenho uma linha vermelha traçada e daqui eu não passo, que é a responsabilidade fiscal. A gente vai ter de seguir a regra do teto (de gastos). Vamos ter de fazer isso dentro da regra do teto e da Lei de Responsabilidade Fiscal.”

Isso colocava uma restrição, e ele levava uma solução. A lei prevê, em momentos de crise absolutamente inesperada, que a gente edite uma medida provisória com um crédito extraordinário. Mas isso teria de ser compensado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Então, cumprimos o teto, a Lei de Responsabilidade Fiscal e fizemos a compensação. Foi uma medida muito difícil de implementar, que demandou uma coordenação muito intensa da nossa parte, além de convencimento das instituições, como da ANP, da Receita Federal, de todo mundo que tinha de entrar na conta. A gente conseguiu unir todas essas pontas pelas ideias que o Eduardo foi trazendo e pela capacidade de falar para políticos que estavam preocupados com o evento de que havia limites, de que estávamos com os pulsos amarrados pelas regras fiscais, tal como tem de ser, e que iríamos decidir dentro desses limites - mas havia uma solução.

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