Inflação: ‘Governo precisa gastar com consciência, pensando no futuro, não na eleição’, diz Heron

Para professor da FEA/USP, foco da inflação atual é o descontrole dos gastos públicos, e política fiscal deveria ser o ator principal, não coadjuvante, no combate ao desarranjo de preços

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Foto do author Márcia De Chiara
Atualização:
Entrevista comHeron do CarmoProfessor sênior da FEA/USP

O economista Heron do Carmo, professor sênior da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP), está mais preocupado com os efeitos dos gastos do governo na inflação deste ano do que a alta dos preços dos alimentos.

Nas suas contas, a inflação de alimentos, cujos preços sobem e descem, deve ficar este ano muito próxima da inflação geral, projetada pelo economista em 5,5%. A diferença entre a inflação de alimentos e da inflação geral já foi muito maior nos últimos anos, lembra, quando a variação de preços de alimentos superou com folga a inflação da economia como um todo.

Na análise de um dos maiores especialistas em inflação, o foco da inflação atual é o descontrole do gasto público. Aliás, a sua projeção de que o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) atinja 5,5% este ano tem como premissa básica que o governo adote medidas que tranquilizem os mercados de que haverá uma atenção maior ao controle dos gastos públicos.

“Não se trata de deixar de gastar”, pondera Heron. “É simplesmente controlar o aumento das despesas, gastar com consciência pensando no futuro do País, não na próxima eleição municipal ou governos que ficam prisioneiros de pesquisas eleitorais”, afirma.

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Economista Heron do Carmo projeta inflação de 5,5% para 2025, desde que o governo sinalize controle de gastos Foto: Hélvio Romero/Estadão

No cenário econômico de combate à inflação, o economista ressalta, ainda, que a política fiscal deveria ser o ator principal, não coadjuvante da política monetária. E que essa configuração atual que privilegia a alta dos juros para conter o avanço da inflação tem um preço muito alto para a sociedade, que é o aumento do custo da dívida pública.

Em relação à inflação dos alimentos, Heron diz que não há nada o que fazer no curto prazo. Mas recomenda a retomada de mecanismos de planejamento e previsão de oferta de comida que existiram no passado, ressaltando que se trata de uma questão de segurança alimentar. “O governo tem que pensar no abastecimento, não no preço.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

A inflação hoje preocupa?

Inflação é sempre preocupante, especialmente no Brasil.

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Por quê?

Nós já vivemos, no passado, situações de descontrole da inflação. Lá atrás chegou a 100% ao mês e depois apresentou trajetória descendente. Sabemos da dificuldade de reduzir a inflação diante de uma série de demandas sociais que temos e também diante de restrições de ordem política e institucional. Vários governos tomaram medidas para conter a inflação e depois reduzir, com os planos de estabilização. Mas sempre com uma dificuldade: a política fiscal como coadjuvante da política monetária. Deveria ser o inverso. A política fiscal dando mais estabilidade, com a dívida pública sob controle, e a política monetária fazendo com que os choques não se incorporem à taxa de inflação. Tivemos um relativo sucesso, porque raramente desde o Plano Real a inflação rompeu 10% ao ano. Estávamos no caminho de trazer a inflação para 3%. Mas esse compromisso frouxo com o controle fiscal criou um problema para que a inflação continuasse a se manter dentro da meta. Digo isso porque choques ocorrem, tanto no sentido positivo como no negativo. Faz parte da vida. Mas o importante é a tendência que agora pode ser de uma queda bem suave da inflação ao longo do tempo.

O sr. acha que o problema hoje da inflação é a questão fiscal?

O problema é o gasto público. A economia está aquecendo em marcha forçada. Isso estimula a demanda agregada. Como o Brasil investe muito pouco, a oferta agregada não tem condições de acompanhar o ritmo da demanda. E uma das consequências é justamente a inflação. Como a política monetária tem sido ativa, o Brasil tem operado com taxas de juros muito altas. Isso tem um custo, que se desdobra no custo fiscal, que é justamente o quanto se paga para rolar a dívida interna.

E os alimentos?

Se verificarmos o que aconteceu com os alimentos desde o ano passado e analisarmos o comportamento deles relativamente à inflação de anos anteriores, verificamos que o diferencial dos preços dos alimentos em relação à inflação geral em 2024 não foi tão grande como em anos anteriores. Já houve diferenças muito maiores no passado, com a inflação de alimentos muito acima do índice geral. Mas, para a população, o lado mais visível da inflação é o alimento que está subindo de preço. Se tem algum produto que está caindo de preço, ela não se importa. As pessoas têm uma visão seletiva. Isso é bom: elas se preocupam com aquilo que subiu. Mas isso cria um problema político, evidentemente. A minha leitura é que o que motivou o governo a propor uma série de coisas foi a percepção do impacto do aumento de preço de alguns alimentos: carne, café e laranja.

Como o sr. avalia a inflação de alimentos?

Alimentos muito importantes, como carne e café, ainda estão com a oferta pressionada e devem continuar subindo acima da inflação. Boa parte do índice de alimentação está ligado ao setor de carne. O aumento da carne bovina, afeta o preço da carne suína, do peixe, do frango, dos ovos e dos derivados de carne. Tudo isso tem uma participação grande no IPCA. Na média, a inflação de alimentos deste ano tende a ficar próxima da inflação geral.

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Quanto o sr. projeta de inflação geral para este ano?

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Eu diria que a inflação deve ficar em 5,5% com uma ressalva: desde que sejam adotadas medidas que tranquilizem os mercados de que haverá uma atenção maior ao controle dos gastos públicos. Se isso ocorrer, teremos este ano uma inflação um pouco maior do que a do ano passado, devido a fatores de inércia. A inflação passada é repassada para um conjunto de preços, principalmente os serviços, que são indexados. Os preços dos serviços têm um comportamento monotonicamente crescente. Já os alimentos têm volatilidade maior, variam tanto para cima como para baixo.

O sr. falou que projeta um IPCA de 5,5%, se o governo sinalizar medidas de ajuste nos gastos públicos. E se ele não sinalizar, quanto a inflação poderá chegar neste ano?

É difícil fazer prognósticos. Se ele não sinalizar, você tem a velha questão: o descontrole das contas públicas. Isso estimula a demanda e acaba afetando o dólar. Se há uma desvalorização cambial, os preços em real sobem.

Há previsões no mercado de até 7% para inflação neste ano. O sr. acha um exagero?

Exagero não é. Nessa projeção de 5,5%, tem como pressuposto que serão adotadas medidas para evitar um crescimento tão rápido da dívida pública em relação ao PIB (Produto Interno Bruto), como vimos nos últimos anos. Tem outra questão que vai entrar nessa conta. A tendência é a atividade econômica não ter uma evolução tão favorável como em anos anteriores. Isso afeta a relação dívida/PIB. Se não for feito nada para acalmar o mercado, isso pode levar a uma continuidade do processo de desvalorização cambial, o que pode levar a uma inflação bem acima do previsto. Mas estou confiante de que serão adotadas medidas para tentar dar um norte para essa questão.

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Como o governo pode resolver a da inflação dos alimentos?

No curto prazo, não dá para fazer nada. Nem o regime militar com o AI 5 (Ato Institucional nº 5), que tinha um artigo justamente para dar poder de intervenção na economia, com tabelamento de preços, não funcionou. Muita intervenção mais complica do que ajuda.

Tem que esperar o mercado resolver sozinho?

Tem que dar uma chance ao mercado, tem que dar estímulo. O governo tem que pensar no abastecimento, não no preço.

O sr. acha que a inflação de alimentos mostra a necessidade de o governo pensar em mecanismos de segurança alimentar, de manter estoques ou algo nesse sentido?

O importante é prever. No passado havia um órgão do governo, a Companhia de Financiamento da Produção, depois incorporada pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), que acompanhava o setor agrícola. Isso é algo que todo governo deve ter. No caso de alguns alimentos, não dá para intervir na situação no meio do caminho. Tem que prever, planejar. Sempre que o preço de um alimento cai muito, é perigoso no momento seguinte. Essa é uma questão de Estado, não de governo, de segurança alimentar, prevendo o que pode acontecer até com os preços. O que está faltando é exatamente isso.

Qual é o ponto crítico da inflação para os próximos meses: câmbio, alimentos, serviços?

A questão que convém acompanhar é a evolução dos preços dos serviços, que dão, de certa forma, a tendência da inflação. A questão das escolas, dos planos de saúde, tudo isso é serviço. Temos reajuste gregoriano também: muitos profissionais iniciam o ano com preços reajustados, como médico, dentista, barbeiro, cabeleireira. Além disso, teve a volta recente do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre os combustíveis. E os preços da gasolina e do diesel estão defasados. Todos esses preços têm um peso significativo na composição do índice de inflação.

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Quando a taxa de juros vai começar a fazer efeito para conter a inflação?

Ela já está fazendo efeito. O nível de atividade econômica não está crescendo no mesmo ritmo. O efeito da taxa de juros não é da noite para o dia. Precisa, reitero, que tenha um coadjuvante importante, talvez seja o personagem principal, a política fiscal. Não se trata de deixar de gastar. É simplesmente controlar o aumento do gasto público. Gastar com consciência pensando no futuro do País, não na próxima eleição municipal ou governos que ficam prisioneiros de pesquisas eleitorais. Se isso for feito, a (alta da) taxa de juros terá muito mais potência.

O sr. acha que o Banco Central está certo ao sinalizar uma nova alta de um ponto porcentual nos juros?

Acho que está certo para justamente evitar um descontrole maior. Mas ele não pode continuar subindo a taxa de juros nesse ritmo por mais tempo.

Por quê?

Porque cria um descompasso muito grande na política econômica. É um custo muito grande para o País no longo prazo, porque toda a dívida tem que ser paga.

O sr. vê hoje descontrole na inflação?

Não, mas não dá para brincar. Inflação é rígida para baixo e flexível para cima. Para subir, tudo ajuda. E para reduzir, é um esforço danado.

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