Em linhas gerais, como regra de gasto, o arcabouço fiscal, com o crescimento do gasto limitado a 70% do crescimento da receita, é razoável. O problema são as condições iniciais: o “pecado original”. Para que o leitor tenha uma ideia, imagine que se depare com um amigo que lhe diz que decidiu fazer regime e perder quatro quilos, mas que, antes de iniciar o regime, engordará cinco quilos. Não seria um bom começo, não?
É mais ou menos com isso que estamos nos deparando neste “Lula 3″. O presidente diz que ninguém pode lhe cobrar compromissos com a austeridade, porque no seu governo de 2003-2010 já teria dado mostras do seu rigor. O problema é que o superávit primário total de 2003 foi igual ao de 2002: 3,2% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto agora o superávit primário de 1,3% do PIB de 2022 vai virar, de acordo com as estimativas oficiais, um déficit de 1,3% do PIB em 2023. A distância entre 2003 e 2023 é de 4,5% do PIB.
Leia mais sobre economia
Crescer o gasto a 70% do crescimento da receita pode ser uma boa regra de ajuste quando se parte de um equilíbrio, mas será insuficiente para gerar uma trajetória fiscal adequada na atual gestão quando se começa com um desequilíbrio elevado. Daí por que a comparação com 2003 para comprovar o compromisso com o rigor do atual governo é improcedente.
Façamos como Newton: Je ne dis rien, je ne propose rien: j’expose (”Eu não digo nada, eu não proponho nada: eu exponho”). O que aconteceu com o gasto real em 2003? O gasto total caiu 4% naquele ano (encolheu, sim!). Naquele contexto, houve uma queda real de 7% da despesa com pessoal, um aumento de 7% do gasto do INSS e uma contração de 13% das demais despesas, sempre em termos reais.
Agora, à luz do relatório de avaliação do segundo bimestre da própria Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que projeta despesas de R$ 2,047 bilhões, supondo uma variação do deflator do PIB de 5%, teríamos um crescimento real da despesa total de 8%. No primeiro ano de governo! Isto é, quando, segundo o bê-á-bá de qualquer manual, os governos costumam “apertar o cinto” para gastar mais depois à medida que se aproximam as eleições. Esse crescimento real será composto por uma expansão de 3% da rubrica de pessoal e de mesma magnitude do INSS e um salto triplo real de nada menos que 17% das demais despesas. Veja o leitor, o contraste: menos 4% em 2003, mais 8% reais em 2023. E, como na prática a regra do gasto como função da receita não valerá para 2024, o governo já anunciou: ano que vem tem mais.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.