É muito ruim para o Brasil que, no meio da mais grave crise econômica e de saúde pública de que se tem notícia, a relação entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, esteja muito ruim. Basicamente, os dois não estão se falando diretamente.
A crise do coronavírus chegou ao Brasil num momento em que já havia um clima de enfrentamento e beligerância entre o Congresso e o Executivo.
Na visão deste colunista, quase toda a responsabilidade pela deterioração do relacionamento entre os dois Poderes cabe ao Executivo. Jair Bolsonaro, além de não montar uma base de apoio parlamentar, permite e estimula que o seu "gabinete do ódio" mova uma guerra virtual contra o Congresso e suas lideranças - em particular, contra Maia, que ajudou muito o governo ao liderar a aprovação da reforma da Previdência.
De qualquer forma, a crise se intensificou com o imbróglio das "emendas do relator" no início do ano, momento em que Maia e Guedes se indispuseram de forma mais aguda.
Com a chegada da crise do coronavírus, e o presidente Jair Bolsonaro empenhado em sua cruzada anticientífica e potencialmente mortífera de sabotar o isolamento social, não se poderia esperar mesmo nenhum diálogo e esforço coordenado entre Legislativo e Executivo.
Dessa forma, a reação brasileira à crise - em termos de gastos para saúde, proteção aos vulneráveis, manutenção de empregos etc.- se dá numa dinâmica de competição entre o governo e o Congresso, para ver quem saiu na frente e quem fez mais.
Esse processo ficou claro na forma como o auxílio emergencial foi subindo de R$ 300 para R$ 500 e R$ 600. Talvez até esse valor final seja adequado, mas o fato é que foi atingido numa espécie de "leilão" entre os dois Poderes, e não da coordenação e do diálogo.
Quando a pauta da reação à crise chegou aos Estados e municípios, a coisa ficou mais séria.
A história dos problemas de solvência pública no Brasil desde a década de 90, e das insuficientes medidas para resolvê-los, é em parte considerável (não apenas) uma história de desequilíbrio das contas de entes federativos subnacionais.
A partir da Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF) e da renegociação das dívidas estaduais no governo FHC, foi estabelecido um arcabouço institucional e jurídico pelo qual o governo federal conseguiu colocar algumas rédeas na gestão fiscal de Estados e municípios.
Esse arcabouço tinha falhas, como a que permitiu uma forte expansão da dívida estadual quando Arno Augustin era secretário do Tesouro no governo Dilma, e vem sendo paulatinamente corroído por decisões do Supremo que impedem a União de executar garantias contra os Estados.
Trata-se, portanto, de uma casa de marimbondos.
No início da atual crise, Bolsonaro, de forma relutante, chamou os governadores e anunciou um primeiro pacote de auxílio: permissão para R$ 40 bilhões de empréstimos com garantia da União; R$ 12,6 bilhões de suspensão do pagamento de dívidas com a União (na prática, a maior parte desta suspensão já estava ocorrendo por liminares dos Estados junto ao Supremo); R$ 16 bilhões para recomposição do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM); R$ 9,6 bilhões em renegociação de dívidas subnacionais com bancos públicos; e mais R$ 10 bilhões em saúde e assistência social..
Ataques ao "lockdown"
Logo, entretanto, o presidente deixou-se dominar por sua obsessão contra o "lockdown", que seria uma conspiração de governadores e prefeitos para prejudicar a economia e minar seu cacife político. Desse confronto, surgiu uma situação quase inédita no Brasil. Todos os governadores, com exceção de três ou quatro, unidos contra o presidente da República.
Os governadores queriam mais que o pacote inicial, e a primeira reação das partes envolvidas (incluindo a equipe econômica) foi de se voltar ao projeto de lei complementar (PLP) 149, o chamado plano Mansueto, que lida justamente com a relação financeira entre União e Estados.
Mas o PLP 149 é um acordo para ajuste estrutural, e não de ajuda emergencial. Os governadores teriam de elaborar uma proposta de ajuste fiscal, remeter ao governo, que teria de analisá-la e aprová-la antes de qualquer benefício. E o próprio crédito é parcelado e dependente do cumprimento de condicionalidades para liberação. Nada a ver com as necessidades de Estados e municípios numa emergência como a atual.
Nessa fase confusa, surgiram as ideias mais perigosas, expostas num artigo dos economistas Marcos Lisboa e Marcos Mendes no Brazil Journal, um serviço de notícias econômicas e financeiras.
Havia medidas que levariam Estados, que não precisam disto, a suspender o pagamento da dívida com a União por seis ou mais anos, algo claramente comprometedor para a solvência pública pós-crise. Créditos enormes com garantia federal poderiam ser estendidos a Estados com finanças públicas precárias, segundo a classificação do próprio Tesouro, resultando quase certamente em futuros "espetos" para a União. E por aí vai.
O debate, porém, evoluiu. Os governadores e o Congresso entenderam que o plano Mansueto não era uma boa base para se começar, e agora a discussão é emergencial. Os aspectos de ajuste estrutural ficam para o futuro, mesmo porque ninguém está em condições de discutir isto agora.
O problema, porém, é que prossegue a total falta da devida coordenação da negociação pelo governo federal.
Houve inclusive uma briga de números, com a equipe econômica estimando o custo do pacote para a União em até R$ 180 bilhões, e relator da proposta, deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), falando em um máximo de R$ 100,7 bilhões.
A questão aí é que os dois lados estão falando de coisas diferentes. Os técnicos da equipe econômica referem-se a todos os custos, incluindo a complementação do FPE e FPM e o que cerca de 18 Estados já economizam não pagando dívidas para a União com base em liminares no Supremo.
Já no cálculo de Pedro Paulo entram as medidas que estão sendo negociadas agora: repasses federais para compensar perdas na arrecadação de Estados e municípios de R$ 41 bilhões (R$ 36 bilhões referentes ao ICMS e R$ 5 bilhões ao ISS); permissão para que Estados contratem empréstimos até 8% da receita corrente líquida (RCL) de 2019 com garantia da União, o que se estima em R$ 50 bilhões; e renegociação de dívidas com bancos públicos, R$ 9,6 bilhões.
Há ainda a suspensão do pagamento da dívida subnacional com a União, que já está em vigor para a grande maioria dos Estados por decisões liminares do Supremo, mas que ganharia mais segurança jurídica sendo referendada em lei com a concordância do governo federal. E a possibilidade de renegociar dívidas estaduais com organismos multilaterais (que dependeria também, claro, da disposição destes últimos).
Parte da discussão atual se dá em termos de prazos. Três meses de compensação de perdas de arrecadação ou mais? Suspensão do serviço da dívida com a União até o fim do ano ou por 12 meses?
A sensação de atores no entorno desse imbróglio é que haveria espaço para uma negociação razoável, se ao menos Guedes se dispusesse a conversar civilizadamente com Maia e outras lideranças do Congresso, e Bolsonaro esquecesse sua campanha insensata contra a quarentena e reunisse os governadores para uma conversa construtiva.
Canais intercambiantes
Os diversos canais do pacote de ajuda são intercambiantes em termos do efeito líquido nas finanças subnacionais. Os Estados, em especial os maiores, parecem mais interessados nas transferências compensatórias por perda de arrecadação do que na permissão de ampliar o endividamento. Se o governo federal caprichasse mais na primeira parte, poderia conter a segunda, por exemplo.
Entretanto, diante da ausência de qualquer liderança ou capacidade de coordenação pelo Executivo do processo de negociação, a decisão final será tomada pelo Congresso e pelos governadores. O que augura mal para os interesses da União, entre os quais a solvência pública de médio e longo prazo.
E há o enorme risco de que, num processo belicoso e descoordenado de votação da matéria, emendas introduzam medidas "bomba" que podem, aí sim, comprometer gravemente a solvência pública.
Maia deve zelar para que isso não aconteça, se deseja manter sua reputação de líder parlamentar responsável. Mas não se poderá jogar toda essa responsabilidade nas suas costas, quando se tem um governo que se recusa a fazer aquilo para o qual foi eleito: governar.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 10/4/2020, sexta-feira.