Governo Lula mantém Pé-de-Meia fora do Orçamento; TCU bloqueia recursos

Ministérios defendem uso de fundos para bancar bolsa a estudantes do ensino médio, mas não comentam dribles nas contas públicas apontados por especialistas; AGU recorre da decisão do TCU

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Foto do author Daniel  Weterman
Atualização:

BRASÍLIA – O governo do presidente Lula (PT) manteve o Pé-de-Meia fora do Orçamento e o programa continua operando à margem das regras fiscais. Nesta quarta-feira, 22, o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu o pagamento dos recursos provenientes de fundos privados e que não tenham passado pelo Orçamento. A Advocacia-Geral da União recorreu da decisão.

O Pé-de-Meia é uma bolsa paga a estudantes do ensino médio criada para incentivar a permanência dos jovens e adolescentes nos estudos. O programa envolveu uma operação complexa que somou R$ 12,1 bilhões em 2024. Desse valor, foram pagos R$ 5,6 bilhões diretamente aos estudantes.

Presidente Lula com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o ministro da Educação, em Osasco, em julho de 2024. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

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Para 2025, o governo programou um repasse de R$ 1 bilhão no Orçamento, ainda não aprovado no Congresso, para o fundo do Pé-de-Meia. O valor não é suficiente, o que aumenta a margem para o gasto paralelo, e ainda com um problema adicional: o Executivo pretende tirar recursos do Salário Educação, destinado à alimentação escolar, investimentos em escolas, transporte escolar e livros didáticos, para financiar a bolsa.

O Ministério do Planejamento e Orçamento afirmou que não comenta processos em andamento no TCU, mas ressaltou a importância do Pé-de-Meia para os estudantes. O Ministério da Fazenda disse que “não há ilegalidade em fundos realizarem políticas públicas, pois eles existem para tanto”, mas não respondeu questionamentos adicionais sobre as manobras fiscais. O Ministério da Educação afirmou que todos os aportes foram aprovados pelo Congresso e cumpriram as normas orçamentárias vigentes.

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O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou na semana passada que o Pé-de-Meia estava “entrando” no Orçamento. “Eu disse que tanto o vale-gás quanto o Pé-de Meia seriam orçados de maneira a estarem dentro do Orçamento federal. Então, toda aquela questão do que estava dentro e do que estava fora está superada com a aprovação das medidas fiscais do ano passado”, afirmou.

“As mudanças que foram feitas na legislação vão nos permitir atender as recomendações feitas pelo TCU”, disse. O ministro se refere a uma alteração feita pelo governo no Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) no âmbito do pacote de corte de gastos.

Segundo a Fazenda, o espaço aberto pela economia de despesas poderia ser ocupado pela bolsa do ensino médio. Como mostrou o Estadão, a mudança, no entanto, ainda não foi efetivada.

Como o governo operou o Pé-de-Meia à margem das regras fiscais

O Pé-de-Meia foi criado em 2023. Naquele ano, o governo colocou R$ 6,1 bilhões do Orçamento da União no Fipem (Fundo de Custeio da Poupança de Incentivo à Permanência e Conclusão Escolar para Estudantes do Ensino Médio). O Fipem foi criado especificamente para o programa e é operado pela Caixa. O repasse da União para o fundo passou pelo Orçamento, mas ficou fora dos limites do arcabouço fiscal. A bolsa começou a ser paga aos estudantes em 2024.

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Em 2024, o governo autorizou a transferência de outros R$ 6 bilhões do Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC) para o Fundo do Pé-de-Meia. O FGEDUC é um fundo privado associado ao Fies do qual a União participa como cotista. Essa operação foi diferente da anterior: o recurso não passou pelo Orçamento, mas foi feita uma ligação direta entre os fundos.

No fim do ano, o Poder Executivo autorizou mais R$ 4 bilhões do Fundo Garantidor de Operações (FGO), usado no Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), outro fundo privado, para a mesma finalidade – também sem passar pelo Orçamento. Essa quantia não foi repassada efetivamente para o Pé-de-Meia até a divulgação mais recente dos extratos pela Caixa, em dezembro.

O uso dos fundos foi aprovado por lei no Congresso, mas os gastos em si não passaram pelo Orçamento, o que trouxe problema para as contas públicas, de acordo com especialistas. O governo fez os pagamentos sem se preocupar com o arcabouço fiscal, que limita o quanto a União pode gastar, e a meta de resultado primário, que é a conta final entre receitas e despesas, sem contas os juros da dívida.

“Se o custeio é feito por meio de recursos dos dois fundos, o FGO e o FGEDUC, para o Fipem, que é o fundo do Pé-de-Meia, ocorre uma opacificação dos gastos, que não ficam transparentes. A operação parafiscal é a ligação direta entre esses fundos. É um bypass (drible) no Orçamento", diz o economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Camillo de Moraes Bassi.

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Em setembro de 2024, o Estadão apontou a manobra do governo para turbinar gastos e aumentar o crédito por meio de fundos, incluindo o Pé-de-Meia. Em outubro, o portal UOL publicou que o governo federal pagou R$ 3 bilhões aos estudantes com o drible nas contas públicas, levando o TCU a entrar no assunto.

Após a sanção do programa, em janeiro de 2024, a Consultoria de Orçamento da Câmara classificou o desenho como irregular. Nota assinada pelos consultores Antônio Carvalho Júnior e Dayson Pereira de Almeida em maio diz que o repasse dos fundos para o Pé-de-Meia representa “afronta ao princípio constitucional orçamentário da universalidade, ao princípio da legalidade orçamentária e ao artigo 26 da Lei de Responsabilidade Fiscal”, segundo os quais as despesas devem estar registradas no Orçamento e autorizadas por lei.

Além disso, segundo os técnicos, o modelo também provoca a “realização de despesas públicas à margem dos limites de gasto estabelecidos pelo arcabouço fiscal”. Para que a operação fosse regular, de acordo com eles, o governo precisaria resgatar recursos do FGO e do FGEDUC para só depois repassar o dinheiro para o fundo do Pé-de-Meia, registrando o recurso na Lei Orçamentária Anual (LOA), aprovado pelo Congresso e submetido aos limites fiscais.

Há ainda outro problema apontado pela consultoria. Ao transferir recursos para o fundo do Pé-de-Meia em vez de transferir a bolsa diretamente para os estudantes, o governo cumpre a chamada regra de ouro das contas públicas de forma artificial.

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A regra de ouro proíbe que as operações de crédito (os empréstimos da União) superem as despesas de capital (investimentos em obras públicas, por exemplo). A norma é feita para que, na prática, o governo só se endivide para fazer investimentos, e não para pagar despesas do dia a dia (tecnicamente chamadas de despesas correntes). O Pé-de-Meia deveria ser classificado como uma despesa do dia a dia. Com o fundo, porém, acaba sendo contabilizado como inversão financeira, que é uma despesa de capital, aumentando a margem da regra de ouro.

Como fica o Pé-de-Meia em 2025 e o que o TCU decidiu

Na semana passada, o ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União, mandou suspender os pagamentos do Pé-de-Meia que tenham como origem os dois fundos privados que abastecem o programa e que geram os gastos paralelos. O plenário da Corte de contas referendou a decisão nesta quarta-feira, 22.

Com isso, o governo não pode mais usar os R$ 6 bilhões do fundo ligado ao Fies nem os R$ 4 bilhões do fundo do Pronampe, mas apenas o restante que sobrou no caixa do Pé-de-Meia e que veio do Orçamento da União – um pouco mais de R$ 1 bilhão. Usando essa sobra, por enquanto, o programa não é paralisado, mas o governo precisará colocar mais recursos do Orçamento para manter o repasse das bolsas.

A Advocacia-Geral da União recorreu da decisão do TCU. No recurso, a AGU pede a liberação imediata das verbas e argumenta que não há ilegalidade. Também diz que o bloqueio poderá inviabilizar a continuidade do programa social e transtornos irreparáveis aos estudantes.

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Se o TCU decidir manter a decisão, a AGU pede que seus efeitos ocorram somente em 2026 e que seja concedido um prazo de 120 dias para a apresentação de um plano para cumprir a decisão sem prejudicar a continuidade do programa.

Para 2025, o governo programou um repasse de R$ 1 bilhão do Orçamento da União, que ainda não foi aprovado no Congresso, para o Pé-de-Meia. O recurso não é suficiente para tocar o programa todo, pois o governo contava com o gasto paralelo. Ou seja, será preciso colocar mais recursos se o Executivo de fato quiser colocar o benefício dentro dos limites fiscais.

A verba tem ainda um problema adicional. O Poder Executivo quer tirar recursos do Salário Educação para custear o repasse. O Salário Educação é uma contribuição paga por empresas e é destinada ao pagamento de merenda escolar, ônibus escolar, livro didático e investimento direto nas escolas, despesas recorrentes do Ministério da Educação, e não para a bolsa do ensino médio.

“O valor está muito aquém do efetivamente demandado. Além disso, usar o Salário Educação é um direcionamento extremamente questionável, um desvio de finalidade”, diz Camillo Bassi, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

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A alternativa prevista na lei do Pé-de-Meia é usar o superávit do Fundo Social para bancar o restante do programa. “Com o bloqueio do TCU, o governo vai ter de recorrer necessariamente ao superávit do Fundo Social, mas aí há outro problema, que é o descompasso entre as naturezas da receita e da despesa, pois seria um uso de receita financeira (superávit do Fundo Social) para custear uma despesa primária (aporte ao Pé-de-Meia), aumentando o déficit primário e demandando um esforço fiscal adicional”, diz o economista.

Governo defende uso de fundos, mas evita comentar manobras

Haddad anunciou em novembro que o Pé-de-Meia passaria a integrar o orçamento da educação em 2026. Questionado na semana passada, afirmou que o programa já estava “entrando” no Orçamento e que essa questão havia sido superada com a aprovação do pacote de corte de gastos, de modo a atender às recomendações do TCU. No entanto, a mudança – que poderia abrir espaço fiscal para a incorporação do programa – ainda não foi efetivada.

O Estadão questionou os ministérios da área econômica e o Ministério da Educação sobre as manobras nas contas apontadas por especialistas. A Fazenda disse que “não há ilegalidade em fundos realizarem políticas públicas, pois eles existem para tanto”, mas não respondeu sobre os apontamentos nem sobre a promessa de Haddad de devolver o Pé-de-Meia para o Orçamento.

O Ministério do Planejamento e Orçamento afirmou que não comenta processos em andamento no TCU, mas ressaltou que apoia o programa para a formação de poupança entre os estudantes e para o combate à evasão escolar no ensino médio. O Pé-de-Meia foi uma promessa da ministra da pasta, Simone Tebet, na eleição presidencial de 2022, e uma das condições para que ela apoiasse o presidente Lula no segundo turno da disputa.

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O Planejamento disse que havia uma previsão de R$ 1 bilhão de repasse do Orçamento da União para o Pé-de-Meia em 2024 e que o mesmo valor se repete no Orçamento de 2025, ainda não aprovado no Congresso. O valor citado pelo órgão, no entanto, não foi gasto no ano passado, diante do uso dos fundos paralelos, e acabou sendo cancelado, e é insuficiente para 2025, como a reportagem mostrou.

Sobre o uso do Salário Educação para bancar o Pé-de-Meia, o ministério afirmou que o dinheiro da contribuição é destinado ao financiamento da educação básica, o que inclui o ensino médio, conforme a Constituição. A proibição é aplicada para o pagamento de pessoal ou aposentadorias e pensões, disse a pasta.

Após a publicação da reportagem, o Ministério da Educação afirmou que “todos os aportes feitos para o programa Pé-de-Meia foram aprovados pelo Congresso Nacional e cumpriram as normas orçamentárias vigentes”. A pasta ainda falou sobre outro programa, o Mais Professores, que inclui um “Pé-de-Meia” para os cursos de licenciatura. Nesse caso, de acordo com o MEC, a previsão é de R$ 642,7 milhões em 2025 dentro do Orçamento da União.