BRASÍLIA - O Incra, órgão federal responsável pela política de reforma agrária no País, decidiu reduzir a área de um assentamento criado há 22 anos no Pará, para abrir espaço à mineração de ouro. O projeto, que pretende ser o maior empreendimento de exploração de ouro no País, tem como alvo as bordas do Rio Xingu, logo abaixo da barragem da hidrelétrica de Belo Monte, uma área que já sofre com o controle de água que passou a ser feito pela usina.
O Estadão apurou que um contrato acabou de ser firmado entre o Incra e a empresa canadense Belo Sun, que há uma década movimenta ações na Bolsa de Toronto, prometendo transformar seu “Projeto Volta Grande” em um negócio bilionário de mina a céu aberto. No acordo, o Incra concordou em reduzir uma área de 2.428 hectares da região, cortando o território do assentamento Ressaca e da gleba Ituna, onde vivem cerca de 600 famílias. Em troca, o Incra vai receber uma fazenda localizada a mais de 1.500 quilômetros de distância dali, no município de Luciara, em Mato Grosso, nas margens do Rio Araguaia.
O acordo aponta, especificamente, o repasse ao Incra da Fazenda Ricaville, que tem área de 1,898 mil de hectares. O órgão não explica a quem se destina a fazenda. Não menciona se pretende remover famílias do Pará para Mato Grosso. A negociação determina ainda que a Belo Sun compre, para o Incra, duas caminhonetes com tração 4x4 e de cabine dupla, dez notebooks, dez tablets, quatro scanners e quatro aparelhos GPS do tipo “RTK”.
A decisão surpreendeu muitos moradores da região, associações e pesquisadores que acompanham o processo de licenciamento do projeto de mineração de ouro que pretende se instalar aos pés de Belo Monte, usina que tem sido alvo de mudanças impostas pelo Ibama devido ao impacto socioambiental.
“Meu pai tem uma terra de 100 hectares nessa área que eles querem reduzir. Ninguém discutiu comigo ou com meu pai. O Incra dizia que ia entregar nosso documento definitivo e nunca fez isso. Eu cresci aqui na Ressaca”, disse ao Estadão o morador Idglan da Silva, que vive com seu pai José Pereira Cunha na Vila Ressaca desde 1996. “É uma situação horrível, estamos atordoados. Não conseguimos dormir à noite. Ninguém disse o que vai acontecer com a gente.”
O Incra criou o assentamento Ressaca em 1999. Naquela época, o que havia na região não passava de pedidos de pesquisa mineral. Por isso, nada inviabilizou a criação do assentamento.
A canadense Belo Sun fez seu registro na Receita Federal em julho de 2007, quando comprou uma empresa chamada Verena e assumiu as pesquisas na região. Entre 2010 e 2012, seus relatórios foram aprovados e, a partir daí, a companhia busca o licenciamento ambiental do projeto, que atualmente é responsabilidade da Secretaria de Meio Ambiente do Pará, apesar de todos os impactos ambientais que venha a causar terem sinergia com a usina de Belo Monte, que foi um projeto federal e licenciado pelo Ibama.
“Eu moro aqui no assentamento Ressaca há 24 anos. Nunca vieram aqui dar nenhuma informação. Corre o boato aqui que a gente vai ter que sair”, diz Eduviges Ribeiro de Souza, de 55 anos. A gente tem medo de perder a casa da gente. Tem dez famílias morando no meu lote. É um lote da reforma agrária.”
Compra ilegal
Antes mesmo de chegar a um acordo com o Incra, a Belo Sun tratou de procurar alguns donos de lotes no local e fez, diretamente, a compra de ao menos 21 propriedades de áreas dentro do assentamento, segundo levantamento do pesquisador Elielson Pereira da Silva, doutor em Ciências e Desenvolvimento Socioambiental da Universidade Federal do Pará.
“Isso é uma prática completamente irregular e ilegal. Lotes de reforma agrária não podem ser vendidos. Mas levantamos que a empresa fez isso em ao menos 21 lotes dessa área que, agora, inclui nesse acordo com o Incra”, disse Silva. “É um contrato surreal, com cláusulas draconianas. O Incra foi constituído para fazer reforma agrária. O que ele propõe, neste acordo com a Belo Sun, é fazer exatamente o oposto disso. Ele quer retirar as pessoas, chancelando o deslocamento compulsório de pessoas.”
Silva e uma equipe de técnicos visitaram a região que deve ser repassada para a empresa e identificou que não se trata de uma área abandonada ou isolada. “Há famílias vivendo nessa área, estive na região e vi. Cultivam cacau, cupuaçu. São várias famílias”, comentou.
Fazenda em Mato Grosso
O Incra declarou que o fato de ter aceitado uma fazenda em Mato Grosso como moeda de troca para reduzir e abrir espaço para a mineração de ouro em um assentamento no Pará se deve ao fato de não ter encontrado terra legalizada que pudesse ser adquirida para os assentados nas proximidades da região onde vivem. O Incra revelou ainda que a negociação já era tratada há anos com o órgão.
Em maio de 2017, a empresa ofereceu duas áreas como compensação em uma área próxima no Pará. “As duas áreas foram descartadas por problemas dominiais, a partir de documento emitido pela Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário”, informou.
Depois, no fim daquele mesmo ano, a mineradora apresentou uma terceira área como compensação, desta vez um imóvel rural no município de Pacajá (PA). “Apesar de boas condições agronômicas, também foi descartado por problemas dominiais”, declarou o órgão ligado ao Ministério da Agricultura.
“Por fim, a empresa apresentou nova área como forma de compensação pela cessão pretendida no assentamento Ressaca. Nesta ocasião, foi ofertada a Fazenda Ricaville, com área de 1.898 hectares, no município de Luciara (MT). A área foi vistoriada por equipe técnica do Incra que apontou a viabilidade para criação de um assentamento. A regularidade dominial também foi confirmada pela superintendência regional”, afirmou.
O contrato inclui a compensação de demarcar 3 mil quilômetros de extensão em projetos de assentamentos dentro da gleba Ituna, onde o assentamento Ressaca está incluído, mas não traz nenhum detalhe sobre isso. Questionado a respeito do órgão estar muito distante do local onde as pessoas serão deslocadas, o Incra declarou que “a política de reforma agrária do Incra é de atuação nacional”.
Apesar do levantamento dos pesquisadores apontar a presença de várias famílias na região que será repassada à empresa, o Incra afirma que estas não vivem na “área diretamente afetada” pelo empreendimento. Segundo o órgão, a área não está sendo “destacada” do assentamento, porque o contrato prevê a “coexistência da atividade” de garimpo com o Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA).
Questionado sobre os carros e equipamentos negociados no acordo, o órgão declarou que “são os meios operacionais considerados necessários pelo Incra para o monitoramento e fiscalização de todas as etapas do processo de execução do contrato”.
A respeito da negociação ilegal de lotes entre assentados e a empresa, o Incra declarou que, “na ocorrência de repasse de áreas do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) por assentados, sem anuência do Incra, pode ser configurada infração administrativa, com aplicação dos normativos internos”.
Belo Sun diz que acordo resolve “sobreposição“ de mineração com assentamento
A mineradora Belo Sun declarou que o acordo com o Incra “supera” a discussão sobre os direitos de exploração e posse das terras da região. O assentamento Ressaca, na Volta Grande do Xingu, foi criado em 1999, quando só havia pedidos de pesquisa mineral de empresas brasileiras sobre a região. A companhia canadense Belo Sun só chegou oficialmente no Brasil em julho de 2007, para fazer estudos, e pediu suas concessões de lavra em 2010.
Questionada sobre o assunto, a mineradora declarou que as concessões de pesquisa mineral e a criação do assentamento “ocorreram em momentos distintos, mas a importância do acordo supera essa discussão, pois são estabelecidos condicionantes ao uso da área do Incra”, por meio de pagamentos pelo uso da área pública e “medidas indenizatórias ao programa de reforma agrária”.
A companhia declarou que o acordo “resolve uma sobreposição da área do Projeto Volta Grande e uma pequena porção de terra do Projeto de Assentamento Ressaca”, de propriedade do Incra. “Não podemos esquecer que a atividade de mineração tem rigidez locacional, o que nos impede de criar alternativas locacionais para o projeto”, afirmou.
A empresa não se manifestou a respeito do fato de ter adquirido lotes da reforma agrária em negociações diretas com assentados antes firmar o acordo com o Incra, como aponta levantamento do pesquisador Elielson Pereira da Silva, doutor em Ciências e Desenvolvimento Socioambiental da Universidade Federal do Pará. Trata-se de uma atuação ilegal. Lotes de reforma agrária não podem ser vendidos ou negociados. São propriedades de seu titular, que demandou a terra para viver e produzir nela.