ArtigoDificilmente se poderia acusar Alan Rusbridger de ser uma pessoa antiquada. O redator-chefe do Guardian adora a internet. O site do jornalismo britânico é considerado um dos melhores da sua área.Entretanto, Rusbridger, de 57 anos, optou por preservar seu maior triunfo jornalístico no bom e velho alumínio: na forma de uma chapa de impressão cinza com letras em azul claro, a primeira página da edição de 5 de julho de 2011. O souvenir está na sua mesa da redação em Londres.Grande parte da página é tomada pela fotografia de uma menina, Milly Dowler, de 13 anos, que foi sequestrada quando voltava para casa e, posteriormente, assassinada. No dia 5 em questão, o Guardian revelou que um repórter do tabloide News of the World de Rupert Murdoch grampeou o celular da menina morta.Embora esse tenha sido apenas um dos furos do Guardian no escândalo de escutas telefônicas, o do jornal de Murdoch foi indubitavelmente o mais impressionante. A história abalou o império global do magnata australiano da mídia, escandalizou o público britânico e levou o Parlamento britânico a discutir abertamente a imposição de restrições à imprensa marrom. Murdoch fechou o News of he World e a polícia promoveu uma investigação contra 16 repórteres e diretores do jornal. Tudo por causa dos "guardiões" de Rusbridger.A fama do jornal vem de revelações como essas. Na realidade, ele se tornou símbolo do jornalismo independente. Mas, em termos meramente econômicos, a publicação é um fracasso completo.Como compensar as perdas. The Guardian registra prejuízos a cada ano que passa desde 2004. Somente no ano passado, ele e seu jornal irmão, o Observer, perderam mais de 47 milhões. E foi somente graças à visão e à generosidade dos seus antigos proprietários, a família Scott, que o jornal não faliu.O diário foi fundado em 1936 pelo Scott Trust, uma instituição que tem um único objetivo: "Garantir a independência editorial perpétua do Guardian".Muitos jornais gostariam de se ancorar nesse modelo de negócios. O Scott Trust possui várias empresas lucrativas, inclusive o portal e a revista sobre carros usados Auto Trader. Os lucros gerados nesses empreendimentos são usados para compensar as pesadas perdas do Guardian."Nossa missão é procurar benefícios e não obter lucros", diz o vice-redator Ian Katz. O próprio C. P. Scott, proprietário do jornal no início do século 20, acreditava que era mais importante ser influente do que produzir lucros.Entretanto, as perdas do Guardian tornaram-se grandes demais para a empresa conseguir absorvê-las - e, em 2007, o Scott Trust foi obrigado a vender alguns dos seus bens para repor o dinheiro em seus cofres.Andrew Miller, ex-gerente de uma indústria de bens de consumo, e que no ano passado foi diretor-gerente da companhia controladora do jornal, Guardian Media Group, recentemente advertiu que, se o Guardian continuasse a produzir prejuízos tão pesados, no prazo de cinco anos a companhia ficaria totalmente sem dinheiro.Tentando fortalecer as finanças. O aperto financeiro do jornal se tornou crucial. Os planos atuais preveem que, assim como o Observer, até 2016 o jornal deverá cortar o orçamento em 25 milhões de libras esterlinas ( 28,8 milhões ou US$ 39 milhões). Desde 2009, a publicação demitiu cerca de 300 funcionários de um total de 1.800. No início de setembro, os editores anunciaram ainda que o preço da edição impressa aumentaria 20% para 1,20 libra o exemplar, na tentativa de consolidar as finanças."Não somos uma instituição assistencial", diz Rusbridger. "Podemos gastar muito dinheiro no jornalismo investigativo, mesmo que isso não represente retorno imediato. Mas nossa situação financeira é insustentável."Rusbridger se desculpou com os leitores pelo aumento do preço.Ele diz que o negócio do Guardian não é ganhar dinheiro. "Nós somos uma companhia do setor de comunicação que enfrenta alguns dos maiores monstros da selva - e consegue vencê-los", escreveu em seu pedido de apoio.Mesmo assim, os editores agora abandonaram toda esperança de ganhar dinheiro algum dia com papel impresso. Embora a circulação diária do jornal, fundado há 190 anos, tenha aumentado em 12 mil exemplares depois da história de Milly Dowler, a tendência geral continua de queda.Rusbridger, portanto, procurou bravamente, e desesperadamente, o amparo da internet. Mesmo assim, ele ainda não acha que os leitores online devam pagar pelo privilégio. O site do Guardian é um dos mais populares, entretanto, seu conteúdo é disponível gratuitamente - ao contrário do conteúdo do site do New York Times, por exemplo.Nova filosofia do New York Times. O New York Times também ficou várias vezes no vermelho nos últimos anos e foi obrigado a recorrer a novos acionistas e empréstimos de bilhões. O Times também acreditou num futuro online e se perguntou como poderia ganhar dinheiro na internet. Entretanto, escolheu um caminho completamente diferente do adotado pelo Guardian: pediu aos seus usuários que pagassem.De um dia para o outro, o número dos seus leitores despencou. Entretanto, surpreendentemente, alguns leitores voltaram, e agora pagam sem pestanejar pelo acesso ao conteúdo online do diário.O Guardian e o New York Times são dois gigantes que lutam no mesmo campo de batalha, mas com estratégias diferentes. De um lado estão os americanos, que ousaram cobrar pelo conteúdo, do outro, os britânicos que preferem depender das receitas da publicidade, temendo afugentar o público leitor.Ambos travam uma batalha de princípios em nome de toda a imprensa, que espera o resultado prendendo a respiração. Até o momento, não está claro ainda qual das duas estratégias vencerá.Graças ao apoio do Scott Trust, o Guardian pode se dar ao luxo de ser mais paciente do que o New York Times e a maioria dos outros jornais. Com seus grandes óculos de armação preta e o cabelo preto despenteado, o diretor de redação do Guardian parece uma versão adulta de Harry Potter: um homem que gosta de causar problemas. Quando Rusbridger e seus editores se espalham num mar de sofás de cor amarelo vivo para a reunião de pauta diária das 10 horas da manhã, a sala mergulha no silêncio. Rusbridger então faz alguns elogios à edição do dia anterior, numa voz tão baixa que parece que está falando para si mesmo. Por outro lado, ele mal participa das discussões sobre a pauta do dia.Uma diferença filosófica. Rusbridger ocupa o cargo há 16 anos. Assim como os seus predecessores, a ordem que ele recebeu do Scott Trust é "seguir em frente como tem sido até aqui". Talvez isso signifique, principalmente, do ponto de vista ético e moral do que do econômico, apenas seguir em frente ainda que isso implique se tornar cada vez menos sustentável.A circulação do Guardian vem caindo há muito tempo. Somente no ano passado, caiu 10% apesar do escândalo de Murdoch e das revelações do WikiLeaks sobre os telegramas sigilosos do Departamento de Estado que o Guardian publicou juntamente com o New York Times e Der Spiegel.O declínio da circulação, o destino sofrido por outros jornais britânicos de qualidade, foi causado em grande parte pelos tabloides de Murdoch, que incluem também o Sun. A imprensa tabloide britânica é a mais agressiva do mundo, notoriamente sensacionalista e absolutamente inescrupulosa.Nesse mar de tubarões, o Guardian há muito é considerado um camarão estranho e arrogante. Em nada ajudou o fato de o jornal ter-se tornado famoso por seu estilo conciso, mas com informações seguras, uma espécie de jornal a par de tudo para intelectuais, professores e adeptos de filosofias alternativas. Um jornal que pensa mais do que sabe.Evidentemente, essa imagem está divorciada da realidade já há muitos anos. Poucos outros jornais se mostraram tão persistentes em cobrar as autoridades britânicas como o Guardian sob a direção de Rusbridger. Ele conseguiu colocar um destacado político conservador na cadeia e se envolveu em sensacionais batalhas legais com o gigante dos supermercados Tesco e a petrolífera Trafigura em nome da liberdade de imprensa.Queda da circulação. A própria batalha contra Murdoch angariou muitas simpatias. Um quadro de avisos coberto de pedaços de papel está pendurado no segundo andar da moderna sede do jornal, perto da estação King Cross em Londres. Os pedaços de papel são todos fragmentos de cartas dos leitores: "Congratulações pelo excelente trabalho", diz um deles. Outro, "Onde posso conseguir uma camiseta com os dizeres: Estou orgulhoso de ser um leitor do Guardian?". Mas, com a circulação da edição impressa continuamente em queda, Rusbridger ordenou uma mudança radical de rumo no Guardian. Agora, cada libra deve ser investida nas operações online, e a edição impressa deverá tornar-se menor.Um novo Guardian mais fino, com menos páginas, será apresentado perto do fim do ano, proporcionando aos leitores uma análise de fundo. Os editores não têm ilusões de que isso consiga frear a queda da circulação, mas pelo menos permitirá reduzir os custos.Por outro lado, o Guardian online está se tornando uma força cada vez maior. Segundo a Comscore, que pesquisa o mercado, em agosto o site do Guardian foi o quinto maior do mundo entre os sites dos jornais mais populares do mundo, com quase 32 milhões de usuários por mês. Uma subsidiária americana foi acusada de aumentar os números dos usuários nos Estados Unidos, onde o Guardian já tem um fã clube forte em razão de sua tendência liberal.Mas apesar de toda a sua vivacidade online, o Guardian não está ganhando dinheiro nem na edição da internet. Com exceção de alguns serviços afins e uma assinatura para celulares, o jornal distribui gratuitamente todo o seu conteúdo, porque está convencido de que esta é a única maneira de um dia tornar-se lucrativo. Sua esperança é que quanto mais as pessoas usarem a edição online, maiores serão as receitas da publicidade associada à essa edição.A 'cruz de Rusbridger'. Até o momento, não passa disso mesmo, uma esperança, embora Rusbridger mostre um gráfico de duas linhas que, segundo ele, prova o que ele diz. Uma linha mostra a renda proveniente da edição impressa, que se desloca persistentemente para baixo. A outra mostra a receita da internet que se desloca na direção contrária. Seus repórteres chamam, brincando, o ponto em que as duas linhas vão se cruzar de "cruz de Rusbridger", o momento em que a aposta do seu chefe teoricamente deveria começar a dar certo, embora o Guardian impresso continue perdendo dinheiro.A única questão agora é quando e em que patamar as duas linhas se cruzarão. "É muito cedo ainda para dizer que isso não vai funcionar", afirma Rusbridger. "Teremos de esperar uma mudança da mentalidade da publicidade."O New York Times provou que uma estratégia mais corajosa ou mais arriscada - dependendo da perspectiva de quem a adota - também pode dar frutos.Em março, o editor Arthur Ochs Sulzberger Jr. anunciou que o jornal, já sem dinheiro, começaria a oferecer acesso às informações apenas ao público pagante.Desde então, cobra dos leitores que procuram mais de 20 vezes por mês os seus artigos no nytimes.com US$ 15 e US$ 35, dependendo se eles leem o jornal na internet apenas ou também num smartphone ou tablet, como o iPad."A demanda (pelo jornalismo do Times) é enorme", garantiu o então redator-chefe, Bill Keller, à preocupada equipe da redação. "E, fiquem sabendo, sempre que a oferta é escassa e a demanda enorme, acaba surgindo um modelo de negócio.".Foi uma medida determinante, como dar um salto no escuro sem saber onde se vai cair. Jill Abramson, que assumiu o cargo de Keller no início de setembro, defende o pagamento. Jornalismo tem um preço. Embora não haja nenhuma certeza de que a estratégia compensará a longo prazo, os resultados iniciais têm sido inesperadamente encorajadores.Apenas três meses depois de sua introdução, 224 mil usuários pagavam pelo acesso ao site. Essa é aproximadamente a cifra que a administração esperava até o final do primeiro ano. Não obstante, o jornal não divulgou números mais recentes, nem apresentou ao público detalhes financeiros até o presente momento.A adoção do acesso pago pode ter reduzido o número de leitores do New York Times, mas com um público global de 47 milhões de usuários ao mês, ainda é o site mais procurado. A temida queda da receita online não se materializou, em parte porque os editores conseguiram aumentar os preços, e o ligeiro declínio da renda dos anúncios nas últimas semanas aparentemente se deve mais à crise econômica do que à introdução do acesso pago.Os defensores da nova estratégia afirmam que o bom jornalismo tem um preço. Mas Rusbridger do Guardian acha que isso "soa mais óbvio do que é". Ele não está interessado apenas num modelo de negócio. "Essa história é muito maior, ela diz respeito ao próprio conceito de jornalismo."Não basta para sobreviver. Segundo ele, a ideia de cobrar os leitores online é como tentar aplicar tradições ultrapassadas ao novo mundo digital. "O novo mundo digital é um mundo aberto que envolve leitores." Ele acha que as pessoas que exigem dinheiro dele pretendem que os repórteres sejam os únicos especialistas. "Talvez nosso melhor crítico de teatro consiga nove pontos de dez. A sabedoria global dos nossos leitores pode obter seis. Portanto, a margem para cobrar não é de zero a nove, mas essa linha divisória de três pontos."Entretanto, há um sinal promissor de que os esforços do Guardian acabarão compensando. Desde o escândalo do News of the World, as pessoas recorrem mais frequentemente ao site do Guardian do que ao dos seus concorrentes para se informarem sobre os principais acontecimentos, como os recentes tumultos em Londres e em outras partes do mundo."As pessoas nos consideram uma fonte de informações confiável", diz o vice-editor Katz. "Elas nos levam a sério." Entretanto, isso não basta para sobreviver. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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