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O outro lado do noticiário

Análise | ‘Trumponomics’: a mistura heterodoxa de protecionismo na área externa com liberalismo dentro dos EUA

Entenda o modelo econômico abraçado por Donald Trump, que transformou o ideário do Partido Republicano dos tempos de Ronald Reagan e foi fundamental para ele chegar à vitória nas eleições de 2016 e 2024

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Foto do author José Fucs
Atualização:

Nas primeiras duas semanas de seu segundo mandato, o presidente americano, Donald Trump, gerou muita turbulência nos mercados ao anunciar uma série de medidas destinadas a proteger a indústria dos Estados Unidos de uma alegada “concorrência predatória”, que seria praticada por seus principais parceiros comerciais – a China, o México e o Canadá.

Trump “pôs pilha” na guerra comercial com os três países ao elevar para 25% a tarifa de importação incidente sobre produtos do México e do Canadá, e para 10% a alíquota sobre produtos chineses. Depois, acabou suspendendo temporariamente o “tarifaço” imposto ao Canadá e ao México, em troca da adoção de medidas de contenção da imigração ilegal e de repressão ao tráfico de drogas para os Estados Unidos. Mas, no caso da China, que decidiu retaliar o país com a imposição de tarifas de até 15% sobre certos produtos americanos, não houve mudança por ora na decisão de Trump.

As propostas de Trump incluem medidas tradicionalmente ligadas ao receituário liberal do Partido Republicano, como a redução de impostos, o corte nos gastos públicos e a desregulamentação da economia  Foto: Mark Schiefelbein/AP

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Agora, ele deve anunciar também tarifas de 25% sobre as importações de aço e alumínio, o que deve atingir o Brasil, que exporta os dois produtos para o país. “Qualquer aço que entrar nos Estados Unidos vai ter uma tarifa de 25%. Alumínio, também”, afirmou Trump no domingo, 9, a bordo do avião presidencial a caminho do Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano, realizada em New Orleans, na região sul do país.

Historicamente associado à ala mais radical do Partido Democrata e às legendas de esquerda espalhadas pelo mundo, como o PT e seus aliados no Brasil, o protecionismo de Trump constitui um dos pilares de sua política econômica desde o primeiro mandato e talvez seja sua face mais visível, pelos efeitos que causa na economia global. Representa também uma mudança significativa em relação ao ideário pró-mercado do Partido Republicano, do qual o ex-presidente Ronald Reagan, que governou os Estados Unidos por dois mandatos nos anos 1980, tornou-se o símbolo maior desde então.

Nem todas as propostas de Trump, porém, se contrapõem às políticas defendidas e praticadas pelos republicanos até a sua ascensão política. Seu programa de governo, que ele parece disposto a cumprir à risca, prevê uma estranha combinação de protecionismo na área externa – para estimular a “reindustrialização” americana, preservar “setores estratégicos” de investidores estrangeiros e corrigir o que considera como “assimetrias” existentes nas relações comerciais do país – com bandeiras liberais tradicionalmente ligadas à legenda no front interno, como a redução de impostos, o corte nos gastos públicos e a desregulamentação da economia.

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Embora essa mistura heterodoxa de liberalismo e protecionismo não seja uma unanimidade no Partido Republicano, Trump conseguiu conquistar desta vez, mais do que em seu primeiro mandato, pelo que se pode observar até o momento, um amplo apoio no partido e em sua bancada no Congresso, para levar adiante sua agenda econômica, como mostram até agora as confirmações das indicações de alguns de seus principais assessores pelo Senado.

É certo que há dissidências no Partido Republicano. Alguns líderes da agremiação, como o ex-presidente George W. Bush, o senador libertário Rand Paul e o ex-vice-presidente Dick Cheney e sua filha Liz, que se identificam com os princípios tradicionais do partido, de defesa do livre comércio como alavanca para o crescimento econômico e a prosperidade, veem as ideias protecionistas de Trump com reservas, muitas reservas.

Paul até se mostra alinhado com Trump em suas propostas liberais para o país e nas pautas de costumes e de segurança nas fronteiras contra a imigração ilegal. Bush, porém, prefere manter distância de Trump, enquanto Dick Cheney e Liz, que apoiaram de forma entusiasmada a candidata democrata Kamala Harris na campanha eleitoral, fazem oposição aberta a ele e a seu governo. Eles são, no entanto, as exceções que confirmam a regra. No geral, apesar de alguns analistas afirmarem que ele está “esfarelando” a legenda com suas ideias inusitadas e suas pretensões hegemônicas, Trump se tornou hoje quase uma unanimidade no partido.

Fora dos Estados Unidos, ainda parece difícil para muita gente que se identifica com o pensamento liberal entender essa combinação improvável de protecionismo e liberalismo forjada por Trump e encampada pelos republicanos. Para os liberais da gema espalhados pelo Brasil e pelo mundo e para os libertários como o presidente da Argentina, Javier Milei, que veem a abertura econômica como uma ferramenta valiosa para promover o desenvolvimento das nações, o protecionismo de Trump soa como uma heresia de difícil digestão, mesmo quando combinado com políticas liberais no front interno.

Afinal, como os brasileiros sabem bem e como Milei e seus apoiadores sabem bem também, as políticas de substituição de importações e de proteção ao conteúdo local, por meio de punições tarifárias e subsídios de todos os tipos, geram efeitos adversos no médio e no longo prazo, que vão na direção oposta à pretendida por seus defensores. Em geral, costumam levar os fabricantes locais à acomodação, desestimulam a inovação e o aumento de produtividade e acabam por turbinar a inflação, em prejuízo dos consumidores e da eficiência do sistema produtivo.

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Milei, que já foi chamado por Trump de “meu presidente favorito” e que se alinha com ele em suas bandeiras liberais, na pauta de costumes e na rejeição ao socialismo e a tudo o que se assemelhe ao chamado “progressismo” woke, chegou a dizer que espera “converter” Trump às ideias do livre comércio. É difícil imaginar, porém, levando em conta a convicção que Trump demonstra em relação às suas ideias protecionistas, que Milei tenha sucesso em sua empreitada, embora pipoquem por aí informações de que negocia com o presidente americano um acordo de livre comércio entre a Argentina e os Estados Unidos.

Pelo que se pode observar, a guinada do Partido Republicano neste quesito, que foi tema de um programa de TV imperdível da CNN americana entre o jornalista Fareed Zakaria e o historiador escocês radicado nos Estados Unidos Niall Ferguson (https://shorturl.at/jtxIg), é algo que foi incorporado à legenda e não será surpresa se sobreviver a Trump, para o bem ou para o mal. O próprio vice-presidente J. D. Vance, cotado desde já para ser seu sucessor, compartilha as ideias de Trump – e vai até além no que se refere à proteção à produção local.

Ironicamente, muito do sucesso alcançado por Trump nas urnas pode ser atribuído às suas posições de apoio à indústria americana e a seus trabalhadores

Pelo andar da carruagem, os liberais e libertários do Partido Republicano provavelmente terão de se acostumar com isso, para evitar o retorno dos democratas ao poder, até porque não têm força nem apelo eleitoral para seguir voo solo. Como diz o velho dito popular, terão de ceder os anéis para não perder os dedos, abrindo mão do livre comércio no front externo para garantir a implementação de políticas liberalizantes e algum controle das contas públicas na área interna.

Ironicamente, muito do sucesso eleitoral alcançado por Trump pode ser atribuído não às políticas liberais tradicionais do Partido Republicano, mas justamente às suas posições protecionistas e de apoio à indústria americana e a seus trabalhadores. Foi graças, em boa medida, ao seu discurso do America first que Trump conseguiu conquistar os blue collars marginalizados pela globalização, historicamente ligados ao Partido Democrata, que foram fundamentais para suas vitórias eleitorais.

Muitos trabalhadores perderam seus empregos ao longo do tempo devido à concorrência da China, que ganhou status de “nação mais favorecida” no comércio com os Estados Unidos em 1980 e se beneficiou plenamente disso até pouco tempo atrás, e também em razão das condições favoráveis concedidas ao México e ao Canadá, com a celebração do acordo de livre comércio negociado com os dois países, em 1994. Eles representavam, portanto, terreno fértil para a pregação antiliberal de Trump no comércio exterior. Provavelmente, se não fosse por isso, os republicanos teriam perdido a disputa presidencial para os democratas tanto em 2016 como em 2024.

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Um caso emblemático, ocorrido durante a Convenção Nacional do Partido Republicano que referendou o nome de Trump para a disputa à Casa Branca no ano passado, ilustra bem o que isso significa. No evento, o presidente do sindicato dos caminhoneiros americanos declarou que era a primeira vez que um líder da categoria participava de um convenção dos republicanos e que nunca havia imaginado que isso iria acontecer. Trump conseguiu também um inédito apoio para os republicanos entre metalúrgicos do setor automobilístico e de outras áreas industriais que se tornaram “órfãos” da globalização e tinham laços históricos com os democratas.

Frankenstein

Com a polarização ainda dando o tom na política e o liberalismo perdendo força em quase todo o planeta, inclusive no Brasil, o modelo híbrido proposto por Trump, que de certa forma se repetiu aqui em 2018, com a aliança entre os nacional-desenvolvimentistas representados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e os liberal-democratas da gema, representados pelo ex-ministro Paulo Guedes, pode até parecer um Frankenstein – e talvez realmente seja.

Mas, como mostra o caso de Trump nos Estados Unidos, pode ser também a única alternativa viável hoje para os liberais e libertários conseguirem superar a esquerda retrógrada nas urnas e influenciar de alguma forma a política econômica. A não ser que surjam outros Mileis por aí, com um discurso de grande apelo popular e 100% comprometido com o liberalismo econômico, o que é sempre possível, mas parece pouco provável no momento.

Análise por José Fucs

É repórter especial do Estadão. Jornalista desde 1983, foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Leia publicações anteriores a 18/4/23 em www.estadao.com.br/politica/blog-do-fucs/

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