BRASÍLIA – A Justiça do Mato Grosso decidiu uma disputa de quatro décadas por terras em uma das regiões mais produtivas do agronegócio brasileiro, na região de Sorriso (MT) e arredores – o cinturão da soja, milho e algodão. Em vez de desalojar ocupantes, os proprietários originais serão indenizados em valor pendente de cálculo, mas que pode chegar a uma cifra bilionária, dado o preço das terras no mercado. Cabe recurso contra a sentença de primeira instância.
O caso se arrasta há 40 anos na Justiça mato-grossense. Porém, até o efetivo pagamento da indenização, poderá se estender por outros dez e chegar a 50 anos nos tribunais, estimam os advogados.

Em 1984, o casal de americanos Edmund Augustus Zanini e Therese Frances Zanini resolveu buscar reparação na Justiça. À época, eles haviam conseguido provar que foram vítimas de uma fraude cartorial, que abriu brecha para venda de uma vasta propriedade deles por grileiros. As fazendas, somadas, têm área de 149 mil hectares, similar à da cidade de São Paulo (SP).
A família desembarcou no Brasil no início dos anos 1960. Buscavam oportunidades de negócios em áreas de expansão da fronteira agrícola, caso do Centro-Oeste brasileiro. Zanini vendeu propriedades nos EUA, juntou dinheiro e adquiriu por volta de 1963 uma vastidão em terras (200 mil hectares) na região – à época carente de estradas e infraestrutura. O acesso às terras era feito pelo rio Teles Pires. Ele ainda comprou terras em Goiás, também posteriormente griladas.

O latifundiário americano tinha intenção de desenvolver atividades agropecuárias nas fazendas e depois revendê-las, mais valorizadas. Era um negócio de longo prazo: comprar terra nativa, desenvolver a área, promover a infraestrutura e lucrar mais no futuro. O Brasil foi escolhido, entre outras razões, pela proximidade com os Estados Unidos. Viveram em Cuiabá por cerca de 19 anos.
Naquela época, o País viu um incentivo à ocupação da Amazônia Legal, por parte do regime militar. Em 1969, por exemplo, Edmund Zanini e nove sócios pediram à Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) que qualificasse a Agropecuária Morocó S/A, sediada em Nobres (MT), a receber incentivos fiscais e reinvestir parte do imposto de renda devido no negócio.
O americano foi apresentado como “economista, capitalista e agropecuarista com larga experiência”. Eles pretendiam formar um rebanho de 82.985 cabeças de gado nelore, a fim de suprir a demanda por carne nos centros urbanos de Mato Grosso, Goiás e São Paulo.

Ele não conseguiu liberar todo o recurso que pretendia junto à Sudam, e acabou tendo de vender parte das terras que comprara, o que ocorreu de forma legítima, para a Colonizadora Sorriso, da família Francio – que também fundou a Colonizadora Feliz. À época, ocorria a migração de colonos da região Sul, principalmente paranaenses e gaúchos, para desenvolver as culturas no Mato Grosso. E as terras foram loteadas em sítios e fazendas.
A fraude ocorreu nesse contexto da demanda por lotes e da valorização das terras mato-grossenses. Segundo a família Zanini, houve a confecção de uma procuração inteiramente falsa, que teria sido registrada em um cartório de Paranavaí (PR), em 4 junho de 1977. Esse documento forjado seria usado, em 14 abril de 1978, para venda das terras deles por 15,2 milhões de cruzeiros.
O “grileiro” que se apresentava como representante da família com o documento falso repassou as terras a um homem sem capacidade financeira para comprá-las – ele posteriormente revenderia a área em lotes a diversos produtores, nos anos seguintes, por meio das empresas colonizadoras. Tudo sem aval da família Zanini.

Em 1991, um processo criminal na Comarca de Cuiabá condenou três réus, por falsidade ideológica e estelionato – entre eles o tabelião que lavrou a procuração falsa, nos quatro dias antes da venda fraudulenta. Dias depois, a sede do cartório distrital em Deputado José Afonso, no interior paranaense, seria transferida para uma casa de madeira, em área remota. Ela pegou fogo, mas um livro foi recuperado.
“A procuração para venda das terras foi forjada e era inteiramente falsa, não apenas as assinaturas. Foi forjada com auxílio de funcionários do cartório de Paranavaí. Uma vez descoberta a fraude, o cartório foi mudado para um local ermo e logo depois pegou fogo misteriosamente. Mas o livro 1 do cartório foi salvo das chamas e provou a inexistência da procuração na lista de documentos oficiais do cartório”, relata Ruben Seidl, advogado da família.
Consta nos autos que não havia registro no livro de feitos do cartório, nem nada escriturado. As procurações eram ”montadas, com declarações e assinaturas fictícias de outorgantes e testemunhas“, diz um trecho da decisão, após sete anos de inquérito.

Em paralelo, narra o defensor, os Zanini foram alvo de ameaças e de um crime violento, ainda em 1977. Após o episódio, eles deixaram o Brasil e voltaram a viver nos EUA, voltando eventualmente ao País.
Segundo Seidl, homens armados invadiram a casa da família em Cuiabá, no meio da noite, e “atiraram contra o quarto dos cinco filhos pequenos, tendo as balas atravessado a porta balcão e atingido a parede”. “Por milagre, ninguém ficou ferido, mas os homens armados deixaram uma carta anônima exigindo que Zanini deixasse o País imediatamente ou ele e sua família seriam mortos”, relata o defensor.

Quando propôs a ação em 1984, a família já não estava mais no Brasil. Em depoimento publicado no Diário de Cuiabá, em 1987, Zanini diz que saiu do País por segurança, depois do atentado a tiros no bairro da Boa Esperança e de hostilidades.
“Tenho permanência definitiva no Brasil, autorizada há mais de 27 anos e aqui apliquei minhas economias e trabalhei. Minhas atividades, porém, foram prejudicadas quando comecei a sofrer hostilidades pessoais e a casa onde residia com esposa e filhos, em Cuiabá, foi alvo de atentado a tiros, desferidos contra o dormitório das crianças, em maio de 1977″, escreveu o americano. “Meu afastamento temporário, por razões de segurança, deu oportunidade à trama fraudulenta que então se iniciou.”
O litígio agrário ficou conhecido como Conflito do Americano. Por diversos anos, Zanini buscou provar e difundir que jamais assinara a procuração falsificada. Depois quis recuperar o investimento nas propriedades. Ele viu seu nome ser notícia na região, associado a possíveis prejuízos à safra, dada a insatisfação de produtores que alegaram na Justiça ter comprado as terras de boa-fé e pagado por elas, sem conhecimento da grilagem anterior, além de promovido benfeitorias.
“Não posso agora ser acusado de ‘impedir a safra de Sorriso’, como constou do título da notícia (no Diário de Cuiabá), pois os responsáveis devem ser procurados entre os que transacionaram com os agricultores, transmitindo-lhes terras que não possuíam“, argumentou Zanini. “Penso que os agricultores lesados devem reclamar o ressarcimento de seus prejuízos dos verdadeiros responsáveis.”
Zanini morreu em 2016, aos 84 anos, e foi sepultado no cemitério Gate of Heaven (Portão do Céu, em inglês), em Nova York, onde a família tem propriedades, assim como na Flórida.

Acordos
Em diversas ações judiciais anteriores, os verdadeiros donos já haviam conseguido acordos para recuperar uma área equivalente a 55 mil hectares e obtido indenizações por meio de acordos. Em alguns casos, pediam a metade do valor do terreno. Em 2011, por exemplo, celebraram entendimentos com 278 posseiros, que ocupavam 40 mil hectares.
Ao longo dos anos, a área em questão foi sendo repartida e comercializada em terrenos menores, desde áreas com 200 hectares até extensões que ultrapassam 10 mil hectares.
O caso chegou a ter 329 réus, em duas ações julgadas em conjunto, entre pessoas físicas e empresas. Os dois processos reúnem mais de 15 mil páginas, segundo o tribunal.

O advogado afirma que a família continua aberta a promover acordos judiciais “razoáveis” antes da execução da sentença, mas prevê que, se não forem alcançados, o caso complete 50 anos. “Se não houver acordos em um número substancial, a questão ainda poderá se arrastar por sete a dez anos, devido à morosidade do sistema judicial brasileiro”, afirma Seidl.
Os advogados estimam uma indenização milionária, a ser calculada, pois o pagamento se dá em fases e as terras são valorizadas pela alta produtividade. Cada ocupante vai pagar aos herdeiros do casal - ambos já morreram - uma parcela proporcional à área de seu terreno. Por enquanto, eles consideram impossível chegar ao valor exato.
“Esperar 46 anos por Justiça não é algo a ser comemorado. Edmund e Therese Zanini faleceram em 2016 e 2021, respectivamente, já idosos, sem terem recebido a devida Justiça. Entretanto, os sucessores receberam a notícia com um misto de alívio e preocupação. Alívio pois se trata de mais uma página virada na luta da família por seus direitos. Preocupação porque a sentença ainda não é definitiva, cabendo recursos, e os valores a serem apurados ainda são uma incógnita.”

Sentenciado em novembro, o julgamento é considerado um precedente porque a Justiça de primeira instância do Mato Grosso anulou a compra e venda das terras a partir do documento forjado, mas, em vez da devolução imediata, optou por arbitrar uma indenização aos verdadeiros donos – agora aos herdeiros ou “sucessores”, no jargão jurídico, representados por Douglas Michael Zanini.
O TJ-MS destacou a “inovação” na sentença da juíza Adriana Sant’Anna Coningham, titular da 2ª Vara Cível, especializada em Direito Agrário. Ela estabeleceu que deveria ser paga indenização ao real proprietário, pelos ocupantes que não firmaram acordos anteriormente.

A juíza converteu o pedido de tomada de posse da área em “desapropriação judicial privada indireta ou desapropriação por posse trabalho”, também conhecido como usucapião especial coletivo, e condenou os réus ocupantes da área a pagar o “valor da justa indenização pela propriedade”. Ela rejeitou pedidos de indenização por danos morais e materiais.
O Ministério Público do Estado de Mato Grosso concordou com a solução do conflito agrário dada pela Justiça, por ser uma “alternativa menos drástica” e que leva em conta o “investimento prolongado” e o “impacto posivito” das atividades econômicas na área, como observou a 29ª Promotoria de Justiça Cível de Cuiabá – Defesa Social e Agrária.

“Convém destacar que a área em discussão está situada em uma região de grande prosperidade, mundialmente reconhecida como celeiro do agronegócio. Esta região desempenha um papel crucial na produção agrícola e na cadeia de suprimentos de alimentos e commodities, não só em termos de volume, mas também pela qualidade e inovação das práticas utilizadas”, disse o promotor Carlos Eduardo Silva. “Sua relevância econômica é substancial, refletida em sua contribuição significativa para o PIB agropecuário do País e no abastecimento de mercados tanto internos quanto externos.”
A juíza também decidiu que a sentença será cumprida individualmente, com indenizações calculadas “com base no valor de mercado da terra nua”. Quando o valor for fixado, e o réu ocupante comprovar o pagamento, a sentença valerá como título para o registro do imóvel em seu nome.

O Valor da Terra Nua (VTN) é o preço de mercado das terras desconsiderando quaisquer tipos de benfeitorias, plantações, aterros, açudes, entre outros. O valor pode ser obtido por meio de perícia com aval da Justiça, por meio da tabela da Receita Federal, publicada pelos municípios, ou pela tabela do INCRA para regiões agrícolas do País. A sentença não especificou qual será utilizado.
Na tabela de 2024 da Receita Federal, o valor é de R$ 5.742,11 o hectare em Sorriso, no melhor cenário, caso de uma lavoura com aptidão boa. Já municípios próximos citados na sentença ficam acima: Nova Mutum (R$ 10.103,37), Santa Rita do Trivelato (R$ 12.357,90) e Lucas do Rio Verde (R$ 16.262,39).

Relevância internacional
A magistrada destacou que a área hoje é um polo relevante e um dos terrenos mais cobiçados no agronegócio brasileiro, especialmente no setor de grãos e pecuária. As terras são produtivas, com cultivo por centenas de famílias.
“A história destes autos se confunde com a expansão agrícola ocorrida no Estado de Mato Grosso, e a valorização das terras, principalmente após a mecanização das lavouras nos municípios de Sorriso, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum e Santa Rita do Trivelato que se destacam como verdadeiros expoentes na produção de commodities. A produção nessas áreas é de extrema relevância para o comércio internacional do Brasil, posicionando o País entre os líderes globais na exportação de soja e milho, além de algodão de alta qualidade. Esses produtos são fundamentais para manter a balança comercial brasileira positiva e fortalecer a economia”, afirmou a juíza.
Na sentença, ela também ressaltou que, nos últimos 46 anos, “os ocupantes dessa vasta área de 149 mil hectares realizaram a abertura de terras e investiram significativamente na plantação de lavouras e na mecanização, conferindo a essas terras uma função social e tornando-as altamente produtivas e valorizadas”.

“O interesse social e econômico é indiscutível, pois se trata de área que se tornou altamente produtiva graças ao trabalho e esforços dos réus. Essa produtividade gerou e continua gerando empregos, renda e produção de alimentos, movimentando a economia local e nacional como líder na produção agrícola. Assim, o único ponto que pode suscitar algum debate é a justa indenização devida ao proprietário, a ser paga pelos ocupantes que ainda não firmaram acordo”, escreveu ela.
“O presente feito envolve cerca de 300 famílias que ocupam a área objeto do litígio, por mais de 40 anos, realizando obras e serviços considerados de relevante interesse social e econômico para a região e para o País, conforme já destacado anteriormente; portanto não há dúvidas que a posse dos réus é a que melhor atende a função social”, decidiu Adriana, ao optar pela indenização e não pela devolução das terras.
A juíza afirmou ainda estar ciente de que cumprimento da decisão pode gerar “impacto na região” e que os autos tratam de uma “situação coletiva, altamente complexa e sistêmica”. Ela determinou que, se chegar ao cumprimento da sentença, por falta de entendimento entre as partes, o processo será dividido em fases com participação dos réus, interessados e instituições envolvidas para definir “o melhor plano de execução, de forma que impacte da menor maneira possível”.

O advogado da família, Ruben Seidl, nega que possa haver risco generalizado à produção da região e às empresas e famílias instaladas nas terras.
“A grande maioria dos produtores da região são ricos latifundiários que têm também outras terras e/ou outras propriedades. Não estamos falando aqui de pessoas carentes, mas abastados produtores de soja e outras culturas que são muito lucrativas. Muitos inclusive arrendam suas terras e nem vivem mais no região”, disse ele.
“Mesmo com todo esse problema, a família fez muitos acordos que foram justos para ambas as partes e não prejudicaram a produção agrícola da região, pelo contrário: valorizou as terras que ficaram livre do problema. Infelizmente, muitos ainda resistem à ideia de composição, preferindo manter o processo litigioso. Esta atitude é que eventualmente poderá levar prejuízo à produção em casos isolados, mas não de maneira generalizada.”

O Ministério Público, por meio do promotor Carlos Eduardo Silva, afirmou que não dispõe de dados para avaliar o impacto econômico e que seu parecer buscou resolver um caso de mais de 40 anos. A Defensoria Pública do Estado disse que prefere se manifestar apenas no processo.
Órgãos públicos que acompanham o caso, como o Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat) e a Superintendência Regional de Mato Grosso do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), não se manifestaram.
Advogados e réus procurados não retornaram contatos da reportagem. Eles têm prazo para se manifestar na Justiça após a decisão.
A Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso não comentou. O Sindicato Rural de Sorriso também abdicou de se manifestar sobre o caso. Ex-diretor do sindicato, o produtor Sadi José Beledelli é um dos réus. Em 2009, ele disse ao jornal Folha de S. Paulo que Zanini assinou a procuração para venda das terras, mas depois se arrependeu por causa da valorização. Beledelli não retornou tentativas de contato da reportagem.