Os economistas Marcelo Neri e Marcos Lisboa têm em comum o interesse por políticas públicas que possam reduzir a desigualdade. Como pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, Neri registrou a ascensão da nova classe média. Hoje é ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, busca ampliar os benefícios sociais. Lisboa, quando foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, no início do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, defendeu o programa Bolsa Família, que naquele momento ainda não era consenso dentro do governo. Ao se encontrarem para discutir o tema, porém, divergiram em pontos essenciais. Para Neri, a redução da desigualdade não é um "objetivo geral da nação" que qualquer governo vai abraçar. Para Lisboa, o ponto de vista cria um "falso debate" para que não se fale sobre o que considera a verdadeira ameaça aos mais pobres - a atual política econômica. Um debate acalorado começou diante das câmeras da TV Estadão, continuou após a gravação, nos corredores da redação, no elevador e até o estacionamento do jornal. Abaixo, trechos de uma apaixonada divergência:Estado: A desaceleração na geração de empregos pode prejudicar a distribuição de renda? Marcelo Neri: Ainda existe um descompasso forte entre o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), que tem desacelerado, e o crescimento do mercado de trabalho. Se pegarmos as quatro regiões da PME (Pesquisa Mensal de Empregos) nos últimos 12 meses - que acho a comparação mais relevante - você vê um crescimento de mais ou menos 2% na renda média - um crescimento real per capita. Como a desigualdade está caindo 0,1% ao mês, o que é bastante, a renda do trabalho cresce 6,1%. A redução da desigualdade continua. Marcos Lisboa: Eu sou um pouco mais pessimista. Acho que a conta está chegando. O Brasil adotou uma agenda social por um longo período. Não foi intencional. Foi uma sequência de medidas que permeou vários governos. Essa agenda começa nos anos 90 e vai até a crise externa de 2008. Quando se analisa a desigualdade de renda e a melhoria da qualidade de vida, como Marcelo está enfatizando, a gente sabe que houve meia dúzia de fatores que são relevantes: a longa melhora da educação, desde 1988, o fim da inflação, o crescimento econômico, a formalização do mercado trabalho e uma certa mudança na composição da produção, com ênfase no setor de serviços. Os serviços empregam a mão de obra menos qualificada. Por que eu sou pessimista? Desde 2009, a gente teve uma mudança importante na política econômica, que resgatou a velha política intervencionista dos anos 70. Isso contaminou a produtividade. Acho que a indústria sofreu mais. Mas, recentemente, começa a atingir os serviços. A meu ver, está contratada uma desaceleração para o mercado de trabalho. Estado: A classe C está ameaçada? Neri: Esse risco sempre existe. Mas o ponto que quero chamar a atenção é que o Brasil conquistou muito nos últimos 15 anos: redução da desigualdade, carteira de trabalho, casa própria. Quando uma mulher deixa de ter seis filhos para ter menos de dois filhos, em média, cuida melhor deles. Eles vão para a escola e depois conseguem um emprego com carteira. Estamos diante de transformações estruturais. É uma força que vem de baixo e muda a produtividade. Eu concordo que a gente está num momento em que é preciso fazer uma transformação no modelo. Se você analisar a história brasileira nos últimos 50 anos, vai ver que a cada dez anos tem uma grande mudança. Por coincidência, temos relembrado delas agora porque realmente é como um relógio: o golpe de 1964, o começo da abertura democrática em 1974, as Diretas Já em 1984, a estabilização em 1994, o surgimento da classe média em 2004 - puxando a sardinha um pouco para o meu lado. Agora 2014, 2015 é um momento de transição. Lisboa: Eu concordo que a gente teve mudanças estruturais profundas. Mas o que eu temo é que a forte alteração de rumo que ocorreu a partir de 2009 vai colocar em risco uma parte das conquistas. O Brasil viveu um momento parecido como o de agora em 1974. Houve o choque externo com o aumento do preço do petróleo. O governo quis manter o crescimento e fechou a economia. A conta daquela intervenção do governo foi cara. Foi uma década jogada fora. A contrarreforma, desta vez, foi mais suave, mas o governo mobilizou enormes volumes para o financiamento, o investimento, o crédito subsidiado. Deu errado. Gastou-se muito dinheiro, mas o País não cresceu. Você sabe do meu apoio ao Bolsa Família. O problema não é o Bolsa Família. O problema é o 'bolsa empresário'. O problema foi o comprometimento de uma imensa quantidade de recursos públicos para financiamentos privados. Essa conta ainda vai ser paga e ninguém sabe o tamanho. A outra questão é que as políticas de proteção (que dificultam a importação) prejudicam a produtividade. Estimativas recentes que tenho visto mostram que a produtividade do capital tem caído 0,7% ao ano desde 2009. Neri: Acho que existe aqui uma visão que enfatiza o macroeconômico. Mas como sou um economista ligado à área social, tenho uma base de dados que vai à casa das pessoas. Nos últimos anos, tenho tido o prazer de observar a mudança que acontece na vida das pessoas. Há um descompasso não trivial entre o PIB e a renda das pessoas - o famoso gráfico chamado de boca de jacaré (em que um indicador sobe expressivamente e o outro cai expressivamente, criando a imagem de um jacaré com a boca aberta). Vamos pegar 2012, o ano do pibinho. O PIB cresceu zero, mas a renda das pessoas cresceu 8%. Essa diferença não aconteceu só naquele ano. Aconteceu antes e aconteceu depois. A desigualdade está mudando. Olho as séries e vejo a renda dos analfabetos crescendo mais do que a de pessoas com nível superior - que somos nós. Ou um crescimento maior da renda na periferia do que na capital. O Brasil tem esse nome de 'País do Futuro', mas nos últimos 20 anos temos sido um País do passado. Temos resgatado a população que vivia lá atrás. Estado: Vamos ver se entendemos: Lisboa teme que o efeito da economia vai bater no social e Neri diz que isso não apareceu? Neri: O que estou dizendo é o seguinte: o Brasil ainda tem o investment grade, porém ele foi recentemente rebaixado. Mas o risco de o brasileiro cair de um ano para outro nunca foi tão baixo, e a probabilidade de subir nunca foi tão alta. Entendeu? Lisboa: Mas é bom esclarecer para não parecer que há uma falsa polêmica. O Brasil nos últimos 20 anos evoluiu muito. Estamos de pleno acordo. O meu problema é: por que parou? Por que mudou? Por que colocar em risco o que foi construído? Marcelo, você fala de um descompasso entre PIB e renda. Mas a indústria derreteu nos últimos anos e o setor de serviços foi preservado. Felizmente, a política econômica chegou pouco no setor de serviços - que emprega dois terços da população. Quando eu abro os microdados e olho a vida das pessoas, os empregos e a renda foram preservados porque o setor de serviços ainda estava bem. Nos serviços estão grande parte da mão de obra pouco qualificada. Vem daí aquele fenômeno de a renda dos mais pobres subir em relação à renda dos mais ricos. Os mais pobres trabalham no setor de serviços. Os mais ricos, na indústria... Neri: ...E compram serviços... Lisboa: ...Sim, compram serviços. Mas o problema é que esse processo está se esgotando. Neri: Eu não me sinto confortável, na minha posição, de fazer a defesa de A ou B. Mas ontem, à meia-noite, eu tive o renovado prazer de pegar os dados da PME e ver: a desigualdade continua caindo. Estou na Secretaria de Assuntos Estratégicos. Se tem alguém que precisa olhar para a frente sou eu, até por dever de ofício. O mais importante é que existe uma mudança na sociedade e concordo que essa coisa precisa continuar. Lisboa: O problema é o seguinte Marcelo: você teve uma desaceleração do crescimento, desaceleração da produtividade. O setor de serviços, que permitiu ganhos, está desacelerando. Por outro lado, está piorando o fiscal (a política fiscal, que define como o governo arrecada e gasta para manter a estabilidade da economia). Vai ter uma conta para pagar... Neri: ...Ah... Lisboa: ...Só vou completar aqui. A gente já viveu isso no passado. De novo, relembrado a história: 74, uma crise externa, o governo decide que não podemos parar de crescer, endivida o País, fecha a economia, escolhe os setores vencedores - vamos produzir alumínio, vamos produzir navios. 'O Brasil conseguiu driblar a crise externa' era o que se dizia na época. Mas o crescimento foi caindo devagarinho. O que houve? A conta chegou. Estado: Acho que o pano de fundo dessa discussão é a prioridade que um governo pode dar ou não aos gastos sociais... Lisboa: Não. Meu ponto não é esse...Estado: ...Eu vou chegar lá. O debate que está colocado nas eleições é que você pode priorizar o gasto social ou pode fazer um ajuste doloroso na economia que diminuiria os gastos sociais. Neri: Este não é ponto do Marcos. Conheço ele há muito tempo. Mas você sintetizou muito bem uma questão que não permeia as análises. Eu me pergunto - e isso é uma questão pessoal, individual, minha - quanto você se importa de fato? Quanto te emociona, te mexe, te mobiliza, ver alguém que nunca teve nada melhorar de vida? Eu acho que o debate passa por aí também. Não no caso do Marcos, porque ele tem alta sensibilidade à desigualdade. Mas acho que esse é um debate. Lisboa: Eu discordo. Esse é o falso debate. Esse é o debate que gostariam que existisse. Mas não passa por aí. O debate não é a questão social versus o ajuste econômico. O debate é: a política de proteção setorial, a concessão de recursos crescentes para grupos empresariais, a proteção da economia ou a preservação da solidez do Estado para garantir a continuidade da política social. Neri: A... Lisboa: ...Pera aí, deixa eu só pegar por aqui. Essa polarização agrada à política. Agrada à retórica. Vai de encontro aos temas centrais. A questão é: a política social no Brasil não é conquista de um governo. É uma conquista da sociedade e precisa ser preservada. Estamos ainda hoje nos beneficiando do que o País construiu em 20 anos. Infelizmente, houve essa opção pelo protecionismo, pelo fechamento da economia, por essa agenda de concessão de benefícios a setores escolhidos que batem em Brasília - um benefício tributário para o setor A, para o setor B, uma proteção para a indústria C. Minha preocupação é que isso vai colocar em risco tudo que eu e você, Marcelo, acreditamos que seja o melhor para o social. Neri: Tem a questão macro, a questão social dos indivíduos, das famílias. E tem essa questão mesmo, que é selecionar certo setores. Mas eu acho que existe, de fato, uma diferença entre duas dimensões. Primeiro: quanto a desigualdade importa ou não importa? Isso é uma escolha. Dois: o presente versus o futuro. O grau de permanência dos programas. Lisboa: (risos) Esse é um diálogo meio kafkiano. Marcelo não está debatendo comigo. Está discutindo com outra pessoa. Eu estou defendendo a política social. Você acompanhou o quanto foi difícil focar na política social. Eu estava do lado de lá, defendendo - contrário a muita gente que está aí. Não foi fácil. Você está fazendo um contraponto... Neri: Estou fazendo o contraponto porque acho que a gente está num momento em que existe uma polarização que é muito ruim para o País. E há razões de economia política por trás disso... Lisboa: ...Mas Marcelo, quem defende isso? Neri: Eu acho que existe uma lógica. Quando a desigualdade cai durante 12, 13 anos consecutivos - e começou a cair em 2001 - ela beneficia um mais uns do que outros. Isso mexe com interesses. Não estou falando que esse é o seu projeto... Lisboa: Não vejo ninguém com esse projeto. Marcelo, esse ponto é um espantalho que foi inventado. Poucos governos transferiram tanta renda para o andar de cima quanto este governo. Isso é uma caricatura que foi inventada... Neri: ...Nãoooo. A desigualdade está em queda como nunca esteve... Lisboa: Mas espera aí, Marcelo. Você sabe tão bem quanto eu que, no mercado de trabalho, está caindo a renda dos trabalhadores mais formalizados - e não é a da elite. Não é a da elite. E está subindo a renda dos trabalhadores menos qualificados. Eu acho que associar a redução da desigualdade a interesses que foram contrariados - e que por isso seriam oposição a esse governo - não é correto. Neri: Eu acho que é. Acho que é. É uma parte importante... Lisboa: Marcelo, quantos empresários ganharam dinheiro do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social)? Você acha que não existe esse debate? Isso é demonizar quem discorda. É criar uma caricatura das pessoas que têm visões diferentes. Vamos debater aqui. O meu ponto com este governo é o seguinte: este governo aumentou as políticas de proteção, aumentou a transferência para o andar de cima; felizmente, não destruiu o andar de baixo... Neri: O resumo da ópera é uma desigualdade em queda. E desigualdade em queda é uma variável política... Lisboa: ... Eu acho que não, Marcelo... Neri: ... Variável de política econômica, de política social, de política pública. Mas sabe o que me preocupa? Eu acho que estamos numa situação polarizada. Esse é o momento de construir pontes. Eu acho que há interesses contrariados. A desigualdade cair ao longo do tempo é uma variável fundamental de economia política. Eu temo que independentemente de quem vai ganhar a eleição - e esta é primeira e única vez que vou falar de eleição - temo que a gente saia da eleição com uma polarização do tipo A ou do tipo B. Ambas são péssimas para o País. Lisboa: Marcelo, meu ponto é diferente. Meu ponto é: a desigualdade começa a cair no governo de Fernando Henrique, continua no governo Lula e no governo Dilma... Neri: ...Começou a cair em 2001: final do governo de Fernando Henrique... Lisboa: ...A primeira queda importante é quando caiu a inflação. A desigualdade começou a cair lá atrás... Neri: ...Não cai muito lá não... Lisboa: ...Mas caiu, né? Agora: o meu ponto não é esse. Estou falando que dá a impressão de que a desigualdade caiu porque reduzi a renda dos muitos ricos e aumentei a dos muitos pobres. Não foi isso que aconteceu... Neri: Concordo. Lisboa: É para não parecer que este foi o governo que reduziu a renda do andar de cima. Não. Foi um governo que reduziu a renda do andar médio e subiu a renda do andar de baixo... Neri: O resumo da ópera é: a desigualdade caiu. O que acontece nos Estados Unidos e nos países desenvolvidos - a desigualdade crescer - não está acontecendo no Brasil. Lisboa: Marcelo, eu sou um forte defensor da política social. Ambos somos. Você sabe disso. Eu acho que essa polarização que você está fazendo... Neri: ...Não estou fazendo. Ela existe e não gosto dela... Lisboa: Acho que tem uma crítica legítima a este governo em relação à política econômica. Existe um debate legítimo: estamos ou não enfraquecendo a nossa economia? Isso coloca ou não em risco os ganhos sociais? Neri: Você colocou nesses termos. Eu ouvi. Interagi na medida do possível. Mas acho que o ponto importante é: a queda da desigualdade numa economia como o Brasil envolve questões de economia política.Estado: Nos tornamos um País em que a maioria é de classe C. Quais são as medidas para que a ascensão na pirâmide continue? Lisboa: Sobre a classe C, não aconteceu só no Brasil. O fenômeno da classe C aconteceu em outros emergentes. Qual é o meu receio? O quanto a piora da economia pode prejudicar o Brasil. Neri: Eu entendo o seu ponto, mas acho que não existe uma unanimidade - e acho normal que não haja. A queda da desigualdade não é um objetivo geral da nação. Lisboa: Mas, Marcelo, nós concordamos... Neri: ...Nós concordamos, não há dúvida, mas essa questão é absolutamente importante para a escolha de rumos do País. Nossa desigualdade caiu muito, mas ainda é a 18.ª mais alta entre 155 países. A gente precisa continuar nessa agenda. Eu dou importância aos pontos que você colocou. Estou ouvindo. Mas acho que existe uma questão fundamental: a continuidade da redução da desigualdade. Lisboa: Eu concordo com você. É importante continuar. Mas parte da redução da desigualdade veio do crescimento. O meu receio é que tudo que a gente conquistou e concorda - uma conquista de muitos anos - esteja em risco por uma política que fragiliza a economia. Uma política que vende o futuro para pagar o presente.
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