Como a tecnologia está revolucionando a produção de cannabis para efeitos medicinais no Brasil

Com avanço da regulamentação da cannabis medicinal, a descriminalização e a autorização para o cultivo da planta por cidadãos e empresas, cresce o número de soluções tech feito por e para brasileiros

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Por Anita Krepp

Quando você viaja, quem cuida das suas plantas? No caso dos pacientes de cannabis medicinal que cultivam seu próprio remédio, viajar ou ficar fora de casa por um tempo costuma ser um desafio, afinal, apesar de simples, cultivar a planta não é fácil, e qualquer desatenção pode ser fatal para a continuidade do tratamento.

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Atualmente, mais de 7 mil pessoas têm o direito ao cultivo do seu próprio remédio no Brasil, garantido por meio de habeas corpus que começaram a ser impetrados com essa finalidade em 2017 e vem crescendo exponencialmente, ano após ano. A título de comparação, na Argentina, com uma população total de 45,8 milhões, mais de 300 mil pacientes haviam conquistado o direito ao plantio de cannabis em 2023.

Essas pessoas e outras centenas de milhares que começaram a plantar maconha medicinal no quintal no segundo semestre de 2024, após o julgamento do STF que decidiu pela descriminalização do porte de até 40 gramas da erva e o cultivo de seis plantas por pessoa, se tornaram um público cobiçado por empresas interessadas em oferecer soluções inovadoras para os early adopters de um nicho que deve seguir crescendo e ultrapassar um milhão.

É o caso da Deep Garden, uma empresa cannatech brasileira que planejava abrir operação em Portugal, mas mudou os planos ao perceber o potencial do mercado nacional para agricultura de precisão para esse novo nicho. “Se a agricultura de precisão para os cultivos tradicionais é um mercado de R$ 6 bilhões, o da cannabis, que está só começando, é um super mar azul”, analisa Denis Manzetti, um engenheiro de software que abandonou um trabalho na área de antifraudes de banco para entrar no cannabusiness.

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Denis Manzetti é CEO da DeepGarden Foto: Alex Silva/Estadão

A proposta da Deep Garden é popularizar o cultivo de alto padrão e garantir colheitas mais abundantes e, ao mesmo tempo, mais econômicas através de robôs que configuram as condições de cultivo ideais de acordo com diferentes genéticas da planta e cada etapa de floração, controlando umidade, temperatura, quantidade de água, com autonomia de uma semana.

Se algum parâmetro sai do ideal, por exemplo, uma luz acesa fora de hora, a empresa alerta seus clientes pelo WhatsApp. “A ideia é que os cultivadores extraiam 100% do potencial genético da planta com equipamentos modulados especificamente para a cannabis, permitindo que a pessoa tenha vida e não viva só para cultivar”, resume Manzetti.

Pacientes, primeiro

Entre as principais dores dos cultivadores está a nutrição da planta, fator tão delicado quanto fundamental para a obtenção de uma boa colheita. A imensa maioria dos fertilizantes vendidos hoje no Brasil são químicos e exigem que o cultivador saiba controlar os produtos, daí a dificuldade de produzir uma boa colheita.

O único fertilizante biológico produzido no Brasil foi desenvolvido pela Flowermind, uma biotech do Rio Grande do Sul que vem concentrando esforços em facilitar o autocultivo com uma pegada sustentável, reaproveitando diversos resíduos vegetais que virariam passivos ambientais.

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“No caso do nosso produto é a vida que trabalha contigo, ela que vai equilibrar o ph e entregar os nutrientes conforme as necessidades da planta”, explica Fernando Velho, CEO da empresa, que tem entre os seus maiores desafios escalonar e conseguir acompanhar o mercado com um produto biológico, que sai do Sul do país a 10º e chega ao nordeste a 50º. “Agora mesmo estamos testando matrizes de embalagens para ter um melhor acondicionamento dos produtos e garantir estabilização mesmo em condições extremas”, conta.

A tecnologia já chegou também aos consultórios dos médicos prescritores de cannabis que hoje atendem aos mais de 670 mil pacientes da planta no Brasil. E já não era sem tempo. Por se tratar de medicina personalizada, onde o metabolismo de cada indivíduo reage de maneira diferente a uma mesma dosagem, até o início do ano passado, os médicos sentiam falta de um suporte para balizar o perfil único de cada paciente, e lograr uma prescrição mais certeira.

Mas, desde maio de 2024, quando a Blis – único aplicativo autorizado pela Google Play e Apple Store a realizar a jornada do paciente de cannabis, da consulta à compra, em poucos minutos – lançou no mercado uma plataforma que elevou o status de inteligência artificial aplicado à cannabis, a coisa mudou de figura.

Em menos de um ano de operação, a empresa já conta com um banco de dados com mais de 15 mil anamneses, que favorecem o trabalho do médico e vão traçando, pouco a pouco, o raio-x da saúde dos brasileiros.

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Escalando ainda mais os benefícios que a inteligência artificial pode oferecer ao cannabusiness, a Blis desenvolveu um software para rastrear a demanda opaca dos médicos inscritos na plataforma, dessa maneira, oferecendo também consultas bem abaixo do preço de mercado – e dos valores cobrados normalmente pelo próprio médico.

Toninho Corrêa é co-fundador do Blis – único aplicativo autorizado pela Google Play e Apple Store a realizar a jornada do paciente de cannabis, da consulta à compra, em poucos minutos Foto: Tiago Queiroz/Estadão

“Essa é uma tese que a gente adaptou e botou na plataforma, de que R$ 1 é mais do que 0. Então uma consulta mais baixa, de R$ 89, faz sentido para o médico naquela hora porque ele, que cobra R$ 500, não ia receber nada naquela hora”, exemplifica Toninho Corrêa, que inicialmente era apenas mais um paciente tentando acessar cannabis medicinal, e que ao se deparar com dificuldades básicas que o setor ainda enfrentava, fundou a empresa, que faz o match entre médicos que atendem via telemedicina e pacientes em qualquer cidade do país.

Tecnologia para escalar negócios canábicos

De acordo com a Kaya Mind, empresa de análise de dados do mercado da cannabis, 313 mil pacientes importam seus medicamentos, 212 mil compram nas farmácias e 147 mil recebem seu medicamento através das associações de pacientes.

Uma vez que o paciente adquiriu ou produziu seu próprio medicamento e está com ele em mãos, é possível testar os produtos em casa com os reagentes produzidos pela Reaja, que indicam a presença de CBD e THC – as duas moléculas principais da planta.

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Ainda no primeiro semestre deste ano, a empresa deve lançar um novo reagente semiquantitativo capaz de medir a quantidade de canabinoides presentes com base na intensidade colorimétrica, em uma faixa de 0,5% a 25%, abrangendo os limites comercialmente estabelecidos para medicamentos à base de maconha.

James Kava, sócio e fundador da Reaja, busca expandir o potencial tecnológico da empresa para outras substâncias. “Nada impede que, em um futuro breve, criemos um grande e-commerce de redução de danos e soluções tecnológicas para a cannabis e outras drogas.”

A cannabis medicinal é uma realidade no Brasil há 10 anos, desde que a Justiça concedeu pela 1ª vez o direito à importação de medicamentos a base da planta. De lá para cá, mais de 200 empresas estão cadastradas na Anvisa para prover importação, 13 empresas foram autorizadas a vender diretamente nas farmácias e 237 associações de pacientes surgiram por todo o País.

Cultivo da DeepGarden - Denis Manzetti acredita estar num mercado de "oceano azul", com poucos concorrentes Foto: Alex Silva/Estadão

O mercado cresceu, e com ele, também os desafios para a gestão dos processos e controle de produtos, pensando nisso foi que o neurocientista e tecnólogo Gabriel Camargo criou a D9 Tech, software do Brasil desenvolvido com tecnologia nacional para a gestão de processos de qualquer empresa que trabalhe com grande fluxo de pacientes e/ou produtos.

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“Você vai montar uma loja, vai ao Mercado Livre e compra o sistema pronto, mas a operação de cannabis, não. Hoje, para trabalhar de forma profissional e organizada não há a menor possibilidade de não contar com um software especializado no tema, porque é algo muito específico”, diz Camargo, que oferece suas soluções infratech a associações de pacientes, marketplaces, importadoras e clínicas.

Soluções para o cultivo em larga escala

Desde novembro do ano passado, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, autorizar o cultivo em larga escala de cannabis para fins medicinais no Brasil, empresas que já desenvolviam tecnologias para o pós-colheita aproveitaram a oportunidade para lançar maquinários que prometem otimizar tempo e recursos. Esse novo marco regulatório deve ter suas diretrizes publicadas pela Anvisa até abril, conforme estipulado pelo STJ.

Felipe Farias, empresário e ativista que movimenta a indústria da cannabis já há vários anos, criou a Liamba, uma empresa de soluções tech cujo primeiro produto, uma debastadora (que retira as flores dos galhos), que desenhou e criou com a ajuda do sogro. Essa é a primeira máquina de pós-colheita com tecnologia 100% nacional e capacidade de processar 15 quilos de matéria-prima por hora.

“Até o final de 2025, teremos mais duas máquinas, uma trimadeira automática e outra que separa a fibra longa da curta”, do cânhamo, a variedade industrial da planta, diferenciando, assim, as fibras que serão utilizadas na confecção de vestuário das que poderão ser incluídas em blocos de concreto, por exemplo.

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Felipe Farias e Rafael Gallo não se conhecem, mas estão criando soluções complementares para o pós-colheita. À frente da Hemp Cycle, Gallo passou os dois últimos anos trabalhando na criação de uma máquina de extração semi industrial que promete aumentar a eficiência das associações de pacientes e também das farmacêuticas na extração de tricomas.

“É uma extração super limpa, de grau farmacêutico, que por ser tecnologia brasileira, não precisa esperar assistência de fora, sai mais barato que importar”, argumenta o empresário, que vende a máquina por R$ 90 mil, enquanto uma equivalente importada custaria entre US$ 20 mil e US$ 25 mil (R$ 116 mil e R$ 145 mil).

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