Suspeito sumiu meses antes do assassinato do CEO da UnitedHealthcare. Onde Luigi Mangione estava?

Novos detalhes revelam a crescente impaciência de Luigi Mangione com ‘uma sociedade capitalista’ e sua busca por refúgio nas montanhas do Japão

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Por Mike Baker (The New York Times), Nicholas Bogel-Burroughs (The New York Times), Shawn Hubler (The New York Times) e Jacey Fortin (The New York Times)
Atualização:

Após uma caminhada chuvosa por uma das exuberantes cadeias montanhosas do Japão no início deste ano, Luigi Mangione, um engenheiro de computação na casa dos 20 anos, que havia embarcado em uma longa viagem solo pela Ásia, fez uma pausa para gravar uma mensagem de voz para um amigo que conhecera enquanto viajava pelo exterior.

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Caminhando naquele dia ao longo de um desfiladeiro na região de Nara, Mangione havia fugido de sua rotina no Havaí para relaxar em águas termais, meditar, colocar a leitura em dia e escrever um pouco por conta própria.

“Quero um tempo para me desligar e encontrar a calma”, disse Mangione na mensagem gravada em 27 de abril, sua voz tranquila e contemplativa.

Essa seria uma de suas últimas comunicações antes de ele cortar abruptamente os laços com uma ampla rede de amigos e familiares, que acabariam iniciando uma busca desesperada para localizá-lo. Sete meses depois, Mangione emergiu de seu isolamento como suspeito do audacioso assassinato de Brian Thompson, CEO da UnitedHealthcare, em uma calçada de Manhattan.

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Luigi Mangione é escoltado pela polícia e levado para prisão após ser considerado suspeito de matar o CEO da Unitedhealthcare Foto: Rachel Wisniewski/The New York Times

Período envolto em mistério

Investigadores da polícia têm se esforçado para rastrear os movimentos de Mangione não apenas nos dias que antecederam o tiroteio de 4 de dezembro, mas também nos meses anteriores — um período envolto em mistério.

No entanto, em novos registros e mensagens analisados pelo The New York Times, junto com entrevistas com diversas pessoas que conheciam Mangione, surgiu uma imagem mais completa de um jovem enfrentando problemas médicos debilitantes e cada vez mais desiludido com a sociedade em que vivia.

Amigos e familiares ficaram perplexos com a transformação abrupta de um jovem que parecia destinado a uma vida de conquistas. Ele foi orador oficial em sua prestigiada escola preparatória em Maryland e graduado em ciência da computação pelo renomado programa de engenharia da Universidade da Pensilvânia, com conexões sociais amplas e ambições significativas.

Mas, nos últimos anos, seus escritos e mensagens delinearam uma trajetória mais sombria, passando de um adolescente que comemorava como seus colegas haviam conseguido um recreio extra para um jovem que relatava estar em “dor insuportável”. Ele frequentemente demonstrava preocupação com a crescente dependência da sociedade em smartphones e redes sociais.

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Falta de “interação humana natural”

Durante sua viagem pela Ásia, Mangione criticou o “ambiente urbano moderno japonês”, alegando que brinquedos sexuais, restaurantes automatizados e, de forma mais geral, a falta de “interação humana natural” eram responsáveis pelas taxas de natalidade em queda e pela escassez de conexões humanas.

Cada vez mais, ele demonstrava frustração com o fato de que a sociedade, em geral, parecia incapaz de resolver esses problemas persistentes. Ele também expressava interesse por aqueles que defendiam que a violência poderia ser o próximo passo necessário.

No momento de sua prisão em Altoona, Pensilvânia (EUA), segundo a polícia, estavam em sua posse escritos que refletiam suas recentes reflexões e condenavam a indústria bilionária da saúde, que ele acusava de priorizar lucros em vez de prolongar vidas: “Francamente, esses parasitas simplesmente mereceram isso.”

Mangione agora enfrenta uma acusação de homicídio em segundo grau pela morte de Brian Thompson, o executivo do setor de saúde. Seu advogado de defesa, Thomas Dickey, afirmou que seu cliente é legalmente presumido inocente e pediu ao público que mantenha a mente aberta quanto à possibilidade de ele ter cometido o crime.

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“É absolutamente brutal ter um problema tão paralisante”

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As dificuldades médicas de Mangione parecem ter se intensificado durante seus estudos na Universidade da Pensilvânia, onde entrou para uma fraternidade que priorizava os estudos em vez de festas, comparada a outras organizações do campus. Isso não significava que ele não participava de festas: um vídeo de seus anos universitários o mostra alegremente estourando uma lata de cerveja com a cabeça.

Mas, por trás do exterior amigável e bem-sucedido de Mangione, ele lutava para se adaptar à vida universitária. Ele escreveu nas redes sociais que a “semana do inferno” de sua fraternidade, apesar de “muito leve”, havia perturbado seu ciclo de sono e piorado drasticamente os sintomas de “nevoeiro mental” que ele já experimentava desde o ensino médio. O que antes era uma leve desorientação, ele escreveu, agora estava desestruturando sua vida.

Antes um aluno nota A, Mangione escreveu, em uma série de postagens posteriormente removidas do Reddit, que de repente viu suas notas caírem. Aulas e livros se tornaram confusos, e ele lutava para se concentrar, até mesmo em vídeos no YouTube. Ele tentou jogar xadrez com um colega de quarto, mas não conseguia elaborar estratégias básicas para vencer.

“É absolutamente brutal ter um problema tão paralisante, especialmente porque o próprio problema desgasta a mente crítica/lógica que você geralmente usaria para enfrentá-lo”, escreveu ele. “As pessoas ao seu redor provavelmente não entenderão seus sintomas — certamente não entendem no meu caso.”

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Entre aqueles que tinham dificuldade para entender seus problemas estavam seus médicos; ele sugeriu que os exames que poderiam explicar seus sintomas continuavam apresentando resultados negativos.

Mangione buscou respostas por conta própria. Ele mencionava ter contraído a doença de Lyme aos 13 anos e procurava novos testes já adulto. Alguns estudos apontam que os efeitos da doença, incluindo fadiga, confusão mental, dor, distúrbios do sono e formigamento ou dormência em partes do corpo, podem persistir muito tempo após o tratamento.

Ele também consultava outros online sobre síndrome do intestino irritável e “visual snow”, uma condição neurológica em que a visão é obscurecida por pontos tremeluzentes. Embora pareça ter procurado ajuda médica para os sintomas de confusão mental, ele não mencionou ter recebido tratamento para qualquer transtorno mental.

Cartaz em poste de Nova York pede que Luigi Mangione seja solto da cadeia Foto: Julia Demaree Nikhinson/AP

Brilhantismo acadêmico e espírito empreendedor

Apesar de suas dificuldades, Mangione continuava a demonstrar brilhantismo acadêmico e espírito empreendedor. No verão de 2019, foi escolhido como conselheiro-chefe de um programa pré-universitário na Universidade de Stanford. Ao retornar à Pensilvânia para o ano letivo, um colega de estudos relembra que ele estava disposto a ganhar dinheiro: comprou dezenas de caixas de luzes de Natal e as empilhou em uma escada de seu apartamento fora do campus, vendendo-as para estudantes decorarem suas residências.

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Quando a pandemia chegou em 2020, durante seu último ano na universidade, e os estudantes terminaram o semestre fora do campus, Mangione concluiu, simultaneamente, o bacharelado e o mestrado. Pouco depois, conseguiu um emprego na TrueCar, uma empresa de tecnologia na Califórnia que conecta compradores a vendedores de carros.

Trabalhando remotamente, ele se mudou, no início de 2022, para Honolulu, instalando-se em um espaço de convivência no 40º andar de um arranha-céu perto de Waikiki, no Havaí. Ele tinha um quarto privado em um complexo que incluía uma cozinha equipada, uma área de convivência comum e pranchas de surfe disponíveis para os moradores.

Pouco depois, seus problemas médicos pioraram após uma aula de surfe em grupo, quando ele relatou ter machucado as costas. Mangione contou a amigos que sempre havia lutado com um problema na coluna.

“A coluna dele estava meio desalinhada”, disse R.J. Martin, fundador do espaço de convivência e amigo de Mangione. “Ele disse que as vértebras inferiores estavam quase meio centímetro fora do lugar, e acho que isso pressionava um nervo. Às vezes ele estava bem, outras não.” Em julho de 2023, Mangione escreveu em um post no Reddit que também havia escorregado em um pedaço de papel, o que agravou seus problemas.

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Ele relatou que sentar era doloroso, seus músculos das pernas estavam se contraindo e sentia formigamento e dormência na região da virilha.

Martin disse que Mangione comentou que não tinha relacionamentos porque “sabia que namorar e ter intimidade física com sua condição nas costas não era possível”.

Clube de leitura

Por meses, o sofrimento continuou enquanto ele consultava médicos e tentava vários tratamentos não invasivos. Ele deixou o emprego no início de 2023, dizendo a um amigo que, apesar de pagar bem, era “entorpecedor de tão entediante”. Ele afirmou que queria passar mais tempo fazendo yoga e lendo.

Não está claro, entretanto, como ele financiou os cuidados de saúde depois disso. Em maio, ele completou 26 anos, o que poderia tê-lo excluído do plano de saúde dos pais. A família não discutiu sua cobertura de seguro e recusou pedidos de entrevistas, mas um representante da UnitedHealthcare disse na quinta-feira que Mangione nunca teve seguro de saúde por meio da empresa.

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Nessa época, seus pensamentos pareciam mais voltados a questões filosóficas. Mangione sempre foi um leitor voraz, consumindo de livros que iam de autoajuda a “1984″ de George Orwell, frequentemente anotando ou digitando resumos das ideias dos autores e como elas poderiam se aplicar à sua vida.

“Reflita sobre como o trabalho atual pode impactar positivamente a sociedade”, ele escreveu ao ler “Grit: The Power of Passion and Perseverance”, um livro sobre como superar contratempos cultivando intencionalmente a tenacidade.

“Quando decidimos no que prestar atenção no momento, estamos tomando uma decisão mais ampla sobre como queremos gastar nossas vidas”, escreveu ele enquanto lia “How to Break Up with Your Phone”.

Depois de ler “Bigger Leaner Stronger: The Simple Science of Building the Ultimate Male Body”, anotou dicas sobre como levantar pesos sem agravar os problemas nas costas.

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Entre seus amigos no Havaí, ele ajudou a fundar um clube do livro que começou a se reunir em 2023. Mangione sugeriu leituras de Tim Urban, escritor e ilustrador do blog Wait, But Why, uma coletânea de textos científicos e reflexões culturais popular entre jovens da geração Z ligados à tecnologia. O grupo também leu “The Ape That Understood The Universe”, um dos favoritos de Mangione, que explora a psicologia evolucionista.

Um dos focos de sua leitura eram seus persistentes problemas nas costas, incluindo “Crooked: Outwitting the Back Pain Industry and Getting on the Road to Recovery”.

“Vivemos em uma sociedade capitalista”

No verão de 2023, Mangione decidiu que era hora de buscar cirurgia, viajando para a Costa Leste para realizar o procedimento. Em 10 de agosto, Martin lhe enviou uma mensagem perguntando como tinha sido, e Mangione respondeu com um emoji de riso e fotos de seus raios-X da coluna.

Ele relatou no Reddit que o procedimento foi um sucesso e que já conseguia andar e sentar sem problemas em poucos dias. Começou a encorajar outros a considerar a cirurgia e a insistir com médicos que poderiam hesitar em recomendar soluções cirúrgicas. Em um momento, sugeriu que as pessoas talvez devessem dizer aos médicos que seus problemas nas costas estavam impedindo-as de trabalhar.

“Vivemos em uma sociedade capitalista”, escreveu ele. “Descobri que a indústria médica responde muito mais rapidamente a essas palavras-chave do que à descrição de uma dor insuportável e de como isso está impactando sua qualidade de vida.”

Luigi Mangione, suspeito de assassinar o CEO da UnitedHealthcare, após a sua prisão Foto: Benjamin B. Braun/AP

“O protesto pacífico é completamente ignorado”

Entre seus amigos no Havaí, começaram a surgir tensões no grupo de leitura, segundo participantes. Alguns ficaram incomodados com as escolhas de livros feitas por Mangione, que consideravam excessivamente voltadas para homens e interesses masculinos. Outros se afastaram após uma discussão sobre a possibilidade de ler os escritos de Ted Kaczynski, o chamado Unabomber, que realizou uma série de atentados ao longo de 17 anos, começando em 1978, com o objetivo de chamar a atenção para os custos humanos de um mundo construído em torno da tecnologia.

R.J. Martin disse que foi ele quem sugeriu ler o manifesto de 35 mil palavras de Kaczynski, mas Mangione também demonstrava admiração, elogiando-o em sua página do Goodreads e dando-lhe uma avaliação de quatro estrelas. Ele escreveu que, embora Kaczynski tivesse sido devidamente preso pelos atentados, “é simplesmente impossível ignorar como muitas de suas previsões sobre a sociedade moderna se tornaram precisas”.

Como parte de sua resenha, Mangione citou o que descreveu como observações “interessantes” de alguém que escreveu sobre como as empresas “não têm nenhum escrúpulo em destruir o planeta por dinheiro, então por que deveríamos ter escrúpulos em destruí-las para sobreviver?”. O texto continuava: “O protesto pacífico é completamente ignorado, o protesto econômico não é viável no sistema atual, então quanto tempo levará para reconhecermos que a violência contra aqueles que nos levam a tal destruição é justificada como autodefesa?”.

“Uma preocupação profunda com o futuro da humanidade”

Após sua cirurgia, Mangione viajou pelas ilhas do Havaí, visitou familiares em Maryland e, no início deste ano, embarcou em uma viagem pela Ásia, com paradas na Tailândia e no Japão.

Ele escreveu que achava o ambiente densamente urbano do Japão “um desajuste evolutivo para o ser humano”. Mas adorava as montanhas, dizendo que um de seus objetivos na Ásia era “praticar o budismo”.

Ele descreveu suas viagens a Nara com entusiasmo: “Há pequenas vilas aqui, no lado dos penhascos — vou mandar uma foto. É super exuberante, há um lindo rio que corta o desfiladeiro”, disse ele em uma mensagem de voz deixada em abril. “Acho que quero ficar aqui por um mês, só meditar, aproveitar as fontes termais e escrever um pouco.”

Uma das pessoas com quem conversou durante suas viagens foi Gurwinder Bhogal, um escritor que vivia na Inglaterra. Os dois tiveram uma chamada de vídeo de cerca de duas horas no início de maio. Bhogal lembrou que Mangione inclinava-se à esquerda em algumas questões políticas e à direita em outras, demonstrava interesse em altruísmo eficaz e criticava o vício em smartphones.

“No geral, a impressão que tive dele, além de sua curiosidade e gentileza, foi de uma preocupação profunda com o futuro da humanidade e uma determinação de melhorar a si mesmo e o mundo”, disse Bhogal. Ele também lembrou Mangione discutindo brevemente sobre saúde pública — ele reclamava que os custos de saúde nos Estados Unidos eram muito altos e dizia invejar o sistema de saúde nacionalizado do Reino Unido.

Algumas semanas depois, Mangione enviou outra mensagem ao amigo que conheceu durante as viagens. Ele estava no Monte Omine, no Japão, conhecido por seus testes de coragem e também por proibir a subida de mulheres.

“Essa montanha é o auge da misoginia,” escreveu ele ao amigo. Mas, acrescentou, “eu precisava parar de me distrair com mulheres, rs”.

“Onde no mundo você está?”

Em 25 de maio, a conta de Mangione no Reddit mostrou sua última postagem, na qual ele compartilhou um vídeo em um subreddit dedicado a Kaczynski. A filmagem, intitulada “Streaming Overdose 2024, China”, mostrava dezenas de pessoas alinhadas nas calçadas, transmitindo ao vivo.

Pouco depois disso, amigos começaram a perder contato com Mangione. Um deles lhe mandou uma mensagem em junho — “Onde no mundo você está?” — mas não obteve resposta. Até o fim do verão, familiares estavam entrando em contato com amigos do passado de Mangione, pedindo ajuda para localizá-lo, dizendo que não tinham notícias dele havia meses.

Seus parentes não informaram quando o ouviram pela última vez nem por que esperaram até 18 de novembro para registrar um boletim de desaparecimento na Califórnia.

Poucos dias depois, segundo a polícia, Mangione pegou um ônibus que partiu de Atlanta, com destino à cidade de Nova York.

c.2024 The New York Times Company

Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA.

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