Em julho de 2021, o governo federal alardeou um meteoro: as condenações impostas à União pelo Judiciário impediriam não apenas o incremento do Auxílio Brasil, como comprometeriam a própria execução das despesas ordinárias. O mantra foi repetido até que o Legislativo emendasse a Constituição para permitir que menos da metade das condenações judiciais fossem pagas, algo em torno de R$ 40 bilhões.
O calote vigerá, se assim o permitir o Supremo Tribunal Federal (STF), até 2026, quando a União estará, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), devendo mais de meio trilhão de reais.
As Emendas Constitucionais (ECs) n.º 113 e 114/2021 são fruto de fake news. Não só o Estado deu conta dos gastos ordinários, como foram despendidos mais de R$ 300 bilhões em despesas extraordinárias. O caixa do Tesouro Nacional está e sempre esteve positivo em mais de R$ 1,5 trilhão. A suposta miserabilidade fiscal da União não resiste ao confronto com a realidade.
E nem se diga que, a despeito da disponibilidade financeira, haveria impossibilidade orçamentária ante a regra do teto de gastos. Assistimos ao ruir do teto de gastos, seja em razão da pandemia, seja por força do orçamento secreto, “em tudo incompatível com a forma republicana e o regime democrático”, segundo a ministra Rosa Weber na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854.
Mesmo se o teto fosse observado, duas regras aprovadas com o calote dos precatórios já teriam aberto espaço orçamentário de R$ 100 bilhões, mais do que suficiente para pagar o Auxílio Brasil: a da sincronização, que passou a considerar o IPCA do exercício para atualização do valor do teto; e a que reconheceu que precatórios de titularidade de Estados que deixaram de receber valores do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e os pagos mediante acordos não se submetem ao teto.
As fake news de que pagar precatórios levaria à ruína da Nação têm efeito deletério especial: atacam a democracia em seu pilar fundamental, pois fazem ruir a autoridade do Poder Judiciário, condicionando-a à vontade da União. Só há liberdade quando há escolha consciente. Só há escolha quando os fatos são conhecidos. A mentira distorce os fatos. Esta é a sua perversidade: subjuga as instituições e os cidadãos à retórica escolhida pelo governante de plantão.
Assistimos ao maior teste já imposto à Constituição cidadã. O Supremo Tribunal Federal foi chamado a analisar a validade das Emendas Constitucionais 113 e 114. Confio que saberá honrar o papel de guardião da democracia e do Estado de Direito, protegendo o conteúdo imutável de nossa Lei Fundamental.
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