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Doutor em Economia

Triunfo da injustiça

O Brasil gasta R$ 5 bilhões por ano com o ‘Bolsa Doutor’, segundo dados da Receita

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Por Pedro Fernando Nery
Atualização:

Quase 80% de toda a renda recebida por advogados é isenta de pagar o imposto de renda no Brasil. “Vamos à guerra contra a reforma tributária”, disse no mês que passou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Com a isenção vigente sobre lucros e dividendos, os brasileiros mais ricos se livram de pagar o imposto de renda sobre a pessoa física. 

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Os dados da Receita para 2018 mostram que nenhuma ocupação se beneficiou mais do privilégio do que os advogados. O Brasil gasta algo como R$ 5 bilhões por ano com esse “Bolsa Doutor”. É o suficiente para dobrar o Bolsa Família de 10 milhões de crianças.

Para o presidente da OAB, os problemas da reforma tributária seriam justamente a expectativa de tributação de lucros e dividendos e a unificação de tributos de bens e serviços. Para ele, esse modelo de reforma tributária “quebra a classe média brasileira”. Ambas as medidas, pró-pobre, prejudicariam os advogados (há um 3.º impacto da reforma sobre a classe: eventual simplificação do sistema tributário representará para os tributaristas o que o Uber foi para os taxistas).

Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

As distorções da isenção de lucros e dividendos e da subtributação dos serviços já foram bem exploradas no jornal nas colunas de Bernard Appy – recentemente em “Renda Máxima”. Para recapitulá-las, vamos comparar um advogado com um metalúrgico.

O metalúrgico, contratado via CLT, é remunerado por salário. Assim, recolhe imposto de renda sobre a pessoa física. O advogado, formalizado por pessoa jurídica, é remunerado pela distribuição de lucros e dividendos de sua PJ para a pessoa física. Essa distribuição é totalmente isenta de pagar o imposto de renda no Brasil.

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Ambos serão remunerados de acordo com o que produzirem para seus contratantes e clientes. O metalúrgico trabalha no processo de produção de um bem, o advogado na prestação de um serviço. Como os bens pagam mais tributos hoje do que os serviços, a unificação das alíquotas entre bens e serviços vai aliviar a tributação do bem produzido pelo metalúrgico, e ampliar a do serviço produzido pelo advogado.

Para o metalúrgico, com menos tributos incidindo sobre o que produz, sobrará mais para a sua remuneração. O contrário acontecerá com o advogado, que hoje – como vimos – paga menos do que o metalúrgico.

O modelo atual tem outras distorções antipobre. Como eles gastam mais de sua renda com bens do que em serviços na comparação com os mais ricos, pagam mais tributos sobre sua renda. A geladeira tem mais tributo do que o spa. 

Apesar dos benefícios que um novo modelo pode trazer aos mais pobres, o presidente da OAB extrapola os efeitos da reforma sobre os seus representados para o conjunto da sociedade: “Não é uma reforma tributária. É um aumento de carga tributária.

Uma contradição com a política liberal.” Rebobine para o fim de 2019, quando Felipe Santa Cruz criticava Paulo Guedes pelo “liberalismo radical”.

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Eventual tributação de lucros e dividendos e a unificação das alíquotas de bens e serviços também afetarão outras ocupações da elite, de médicos a consultores financeiros. Mas advogados têm mais a perder porque contam com privilégios específicos tanto na esfera municipal (o imposto sobre serviços, ISS, fixo independentemente do faturamento) quanto federal (as alíquotas baixas, por exemplo, no Simples). A inclusão definitiva da classe no Supersimples, pelo governo Dilma, foi comemorada pela OAB em pleno Planalto: “Entrou para a história como uma das mais importantes datas para a advocacia brasileira”.

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A subtributação da elite não é apenas um problema social e moral, mas também constitucional. Se todos são iguais perante a lei, não é possível manter um sistema em que quanto mais rico, menos imposto se paga – inclusive sobre a renda, que passa a ter alíquotas médias decrescentes a cada faixa acima de R$ 40 mil mensais. A isenção de lucros e dividendos é boa parte da explicação do fenômeno. A pejotização, ao elidir também das contribuições previdenciárias, agride ainda os mandamentos da Constituição por critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência.

Em Triunfo da Injustiça – Como os Ricos se Esquivam de Impostos e Como Fazê-los Pagar, os economistas franceses Emmanuel Saez e Gabriel Zucman refletem sobre como a subtributação das elites não é decorrente de uma deliberação consciente da sociedade, e sim do poder delas em construir artifícios legais que ao longo do tempo criam esse resultado. 

Se as aspirações do presidente da OAB de que seus representados paguem poucos impostos é inteiramente legítima, não deve ser confundida com os interesses da coletividade – especialmente quando colide com uma das finalidades da própria Ordem: a de defender a Constituição. 

O colunista agradece informações de Thales Nogueira e Cláudio Azevedo.

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*DOUTOR EM ECONOMIA