No Brasil e no mundo, forças poderosas induzem as pessoas à pirataria. Ela é, acima de tudo, a manifestação da indignação do consumidor contra os preços elevados de softwares, CDs, DVDs e outros produtos. Ou, talvez, a resposta do cidadão ao comportamento antiético e cínico dos governos. Para agravar ainda mais esse quadro, a digitalização torna praticamente impossível coibir as cópias ilegais. Tudo isso, no entanto, não justifica nem legitima o assalto à propriedade intelectual. Com boa vontade, podemos até entender as razões da maioria das pessoas que discordam dessa questão fundamental. É o que fazemos no caso do leitor Israel Beigler, cujos argumentos resumem os aspectos levantados com mais frequência na discussão do tema. "Há, sim, justificativa para o crime da pirataria" - diz Beigler. "O Estado brasileiro rouba diariamente seus cidadãos, impondo-lhes uma carga tributária de 40% do PIB sem devolver, em contrapartida, os serviços essenciais, como saúde, educação e segurança. Se eu não tivesse que pagar R$ 1.500 por mês de plano de saúde, R$ 1.500 de escola e sei lá quanto em sistemas de segurança no meu prédio, aí, então, eu teria renda disponível para comprar tudo original. Enquanto isso não acontece, vamos de pirataria." Tudo que Beigler diz é verdadeiro. Mas, como ensinam os filósofos, premissas verdadeiras nem sempre levam a conclusões corretas. O raciocínio desse leitor é um sofisma perfeito, montado sobre premissas verdadeiras, mas que conduz a uma conclusão falsa e antiética. "Outro dia - argumenta - procurava comprar um Office decente para instalar em meu novo laptop (não pirata). Seu preço: R$ 990, ou seja, um terço do que paguei pelo computador (R$3.000). Não tive dúvida: liguei para o meu fornecedor paraguaio. Não culpo as multinacionais, mas o Estado brasileiro, sim!" Em síntese, ao optar pela pirataria, Beigler manifesta sua repulsa tanto contra os preços absurdos do software legalizado, oficial, como contra a corrupção e a ineficiência dos governos e da maioria dos políticos brasileiros. MAZELAS Seria bom que, na hora de votar, o povo refletisse sobre algumas mazelas brasileiras. Que país realmente civilizado toleraria como o Brasil a protelação indefinida e o calote de milhares de precatórios? Que dizer da atitude de nossa Previdência com milhões de aposentados que contribuíram durante 35 anos ou mais sobre o teto de 10 salários mínimos e, agora, na velhice, recebem pouco mais do que a metade disso? Que dizer dos serviços públicos indecentes na área da saúde e da educação providos pelo Estado, em troca dos impostos escorchantes que pagamos? Que dizer ainda dos juros que ultrapassam a barreira dos 100% ao ano, cobrados legalmente do consumidor, quando a inflação não passa de 4% ou 5%? A verdade nua e crua é que os preços excessivos dos produtos mais desejados - como softwares, computadores pessoais, videogames, CDs e DVDs - acabam sendo um convite irresistível à pirataria. Embora concorde que, para se evitar o caos, o comportamento ético e civilizado deva vir antes do progresso e do bem estar social, o leitor não tem paciência de esperar que esse dia chegue. Sua pergunta é dramática: "Enquanto durar essa transformação, o que fará a atual geração? Deixará de consumir? Terá que esperar o 13º salário e comprar um cedezinho por ano, ou emplacar 48 módicas prestações mensais nas casas Bahia para curtir seu tocador de MP3 original? Você tem ideia do que é viver com um salário de R$ 700 ou de R$ 2.000 por mês?" Outro leitor, Jonas Paulo Negreiros, relata sua experiência: "Em 1990, comprei meu primeiro notebook, tecnologia 486. Usado e caro: quase US$ 600, na época. Comprei o programa Windows 3.1 oficial. Instalei a versão mais enxuta, que funcionou perfeitamente. Saí, então, à procura da planilha Excel, versão 4.0, adequada à potência da minha máquina, nos revendedores autorizados Microsoft. Ninguém mais tinha o programa. Com o lançamento da versão 5.0, a anterior foi recolhida. Posso comprar carros usados, livros usados e discos usados, sem problemas. É estranho que uma obra literária (assim são classificados os softwares) antiga não esteja disponível ao menos nos sebos, a preços módicos. Essa relação leonina entre os produtores e consumidores (vistos apenas como licenciados) irrita. Instiga, mas, é claro, não legitima a procura por produtos piratas". PROBLEMA EDUCACIONAL O professor Valdemar Setzer, do Departamento de Ciências da Computação da Universidade de São Paulo, tem uma sugestão original: "Hoje, é praticamente impossível coibir a cópia digital ilegal. Pior, a pirataria está induzindo jovens a se tornarem criminosos. Quantos pais não perguntam ao filho se já copiou aquele software, aquela música ou aquele filme? Talvez esse problema educacional seja muito pior do que os prejuízos das empresas". Para Setzer, a solução é simples: "É só permitir que pessoas físicas copiem tudo à vontade - software ou seja lá o que for digital -, mas cobrar seus direitos de pessoas jurídicas". Será que as corporações aceitarão esse modelo?
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