Travis Kalanick, o obstinado CEO do Uber, parece sentir um prazer especial em enfrentar concorrentes e órgãos reguladores. "Eu sei que às vezes as pessoas acham que eu exagero um pouco ao sair em defesa do Uber", gracejou ele no início de junho, quando a companhia que conecta motoristas e passageiros celebrava seu quinto aniversário. "Sei também que algumas pessoas pensam coisas bem menos caridosas de mim." A agressividade de Kalanick ajudou o Uber a se tornar a mais valiosa empresa americana de sua geração. Se conseguir captar mais US$ 1,5 bilhão com investidores, como indicam as notícias, sua valorização implícita chegará a espantosos US$ 50 bilhões. É um número superior ao de 80% das empresas que compõem o índice S&P 500, muitas das quais estão em atividade há décadas. O ritmo de valorização supera o registrado pelo Facebook e pelo Twitter em seus primeiros anos de existência.
Atualmente, o Uber opera em 311 cidades de 58 países, realizando mais de 1 milhão de corridas todos os dias. Os consumidores gostam dos serviços prestados pela companhia e por seus concorrentes, como o Lyft, nos Estados Unidos, o Didi Kuaidi, na China, e o GrabTaxi, no Sudeste Asiático, pois são mais baratos que os dos táxis convencionais. Além disso, os veículos são limpos, e os motoristas, confiáveis. O motoristas autônomos do Uber (que costumam pagar à empresa cerca de 20% do valor recebido por cada corrida) apreciam o horário de trabalho flexível e são poupados das formalidades por que teriam de passar se quisessem atuar como taxistas convencionais.
Mas o Uber também merece a admiração dos estrategistas de outros segmentos da economia. É um exemplo de como construir uma "plataforma", termo empregado no Vale do Silício para designar qualquer serviço digital sobre o qual possam ser criados outros negócios. Ao se instalar numa cidade, o Uber lança um vigoroso programa de recrutamento de motoristas, oferecendo incentivos para os que se registram. Suas tarifas são "dinâmicas" - na maior parte do tempo, ficam abaixo das cobradas pelos táxis convencionais, mas sobem quando chove ou quando por algum outro motivo aumenta a procura por corridas.
Isso leva um número maior de motoristas a ir para a rua justamente quando seus serviços são mais requisitados, o que, por sua vez, garante que os clientes sempre consigam rapidamente um carro para transportá-los - ainda que às vezes o preço da corrida seja um pouco mais elevado -, estimulando-os a continuar usando o Uber e, por conseguinte, assegurando que não falte trabalho para os motoristas. Em pouco tempo, os concorrentes começam a enfrentar dificuldades para competir com a liquidez em corridas do mercado formado pelo Uber. E a partir do momento em que há um contingente elevado de pessoas usando o Uber, a empresa pode utilizar o mesmo aplicativo, os mesmos sistemas de informática e os mesmos motoristas para oferecer a elas inúmeros outros serviços.
Assim, o serviço de conexão entre passageiros e motoristas é para o Uber o que os anúncios gerados por buscas na internet são para o Google: um app espetacular para gerar receitas e atrair a atenção de todo mundo. Cumprida essa etapa, a empresa pode ampliar os horizontes e ingressar em outros ramos de atividade. E ambição é o que não falta a nenhuma dessas duas companhias. A missão do Google é organizar todas as informações do mundo; a do Uber é oferecer "transporte tão confiável quanto água corrente, em todo lugar, para todo mundo". E, talvez, "para tudo": a companhia começa a realizar testes com serviços de entregas locais, com o objetivo de bagunçar o coreto da área de logística do mesmo modo que bagunçou o segmento de táxis.
No mês passado, Toronto se tornou a quinta cidade em que, das onze da manhã às duas da tarde está disponível o serviço de entrega de refeições UberEATS. As outras cidades são Chicago, Los Angeles, Nova York e Barcelona. Os nova-iorquinos que usam o Uber também podem solicitar os serviços de seus mensageiros-ciclistas. E em Washington, os usuário podem recorrer a um serviço de entrega expressa de produtos para a casa. Circulam informações de que a empresa está em conversações com diversos varejistas americanos, da loja de roupas Hugo Boss à ótica Cohen's Fashion Optical, para criar um serviço de entregas no mesmo dia.
Em algumas cidades, já há um bom número de empresas menores fazendo isso: por exemplo, com o app Instacart é possível solicitar a entrega de produtos de mercearia; com o Postmates, o usuário pode pedir refeições quentes; e com o Shyp, pode-se solicitar a coleta de pacotes. Nenhuma delas tem a escala e o alcance do Uber, o que significa que todas têm bons motivos para temer que a empresa de Kalanick venha estragar a festa. "Vai ser a FedEx e a Hertz juntas", é como Max Levchin, um dos fundadores do Paypal, e também um dos investidores do Uber, descreve o futuro da companhia, referindo-se a duas gigantes dos segmentos de logística e locação de automóveis, respectivamente.
Parece improvável que, mesmo a longo prazo, o Uber queira entrar no setor de remessas de longa distância, mas há muito espaço para a consolidação dos fragmentados e ineficientes serviços de entregas em grandes áreas metropolitanas. Para as empresas de serviços postais e de logística pode ser interessante terceirizar o transporte entre seus centros de distribuição e os destinatários finais das encomendas. Mas elas também receiam, ainda que não admitam isso em público, perder mercado para o Uber.
Em março, o presidente da FedEx, Fred Smith, fez pouco da ameaça representada pelo Uber, chamando a atenção para a complexidade das atividades de sua empresa e para as elevadas barreiras que é preciso vencer para entrar no segmento. Acontece que o Uber tem uma vantagem sobre a maioria das empresas de entregas e transportes: não precisa arcar com o custo de manter uma frota de veículos, já que os motoristas são donos de seus próprios automóveis.
As empresas de logística investiram pesado em algoritmos que as auxiliam a programar seus roteiros de entregas com eficiência; mas, à medida em que o tráfego do Uber for crescendo e a companhia se instalar em um número maior de localidades, a quantidade de dados à sua disposição a colocará em pé de igualdade com os demais atores do setor. Além disso, cogita-se que o Uber estaria pensando em adquirir o HERE, o aplicativo de mapas da Nokia, que permitiria à companhia aprimorar seus algoritmos de rotas e reduzir a dependência em relação aos mapas do Google.
Como acontece com o Google, a compreensão que o Uber tem de seus usuários é aprimorada a cada novo dado coletado a seu respeito: por exemplo, quando um cupom de descontos os seduz a usar o serviço de novo. Como acontece com a Apple, o Uber arquiva o número dos cartões de crédito de seus usuários para agilizar o pagamento - o que também facilita a venda de novos serviços.
Chamar grandalhões como FedEx e UPS para a briga não é uma prioridade imediata. Em conformidade com sua estratégia de plataforma, o principal objetivo do Uber é ganhar escala. Por ser uma empresa de capital fechado, o Uber não divulga seu faturamento, mas os analistas calculam que este ano as comissões pagas pelos motoristas à empresa ficarão entre US$ 2 bilhões e US$ 4 bilhões.
Como não é dona dos veículos nem emprega formalmente os motoristas, acredita-se que com 18 meses de operação em uma nova cidade, o Uber já esteja gerando um fluxo de caixa livre bastante significativo. Apesar disso, a empresa continua a captar investimentos a fim de impulsionar sua expansão global e intimidar rivais como o Lyft, que embora seja seu principal concorrente nos Estados Unidos, é avaliado em meros US$ 2,5 bilhões.
Com o tempo, o Uber espera se tornar tão popular e onipresente que muitas pessoas acabarão desistindo de ter um carro, livrando-se de todos os custos e incômodos com estacionamento, manutenção, seguro e coisas assim. Em diversas cidades, a empresa tenta seduzir as pessoas a usar seus serviços em vez de se locomover com o transporte público. Nessas localidades, o custo das corridas é subsidiado para atrair mais motoristas. No momento, os moradores de San Francisco podem usar o UberPool para ir a qualquer lugar da cidade pela ninharia de US$ 7.
A valorização do Uber é extremamente elevada para uma empresa tão nova, e ainda há muitos obstáculos a serem vencidos no caminho antes que a empresa possa ser considerada livre do risco de uma derrapagem. O sucesso de seu principal negócio não está assegurado. Nos próximos meses, a Justiça da Califórnia decidirá se os motoristas que trabalham para o Uber e o Lyft (e outras empresas que operam com esquemas "on demand") são realmente autônomos ou devem ser considerados empregados, coisa que teria implicações importantes para a estrutura de baixo custo das companhias. Os investidores talvez estejam subestimando esse risco.
Concorrentes que contam com o apoio de parceiros endinheirados ainda podem impedir que o Uber venha a dominar as ruas do mundo. Na China, o Uber tem uma parceria com a empresa de internet Baidu, mas seu concorrente local, o Didi Kuaidi, conta com o respaldo de dois gigantes online: Alibaba e Tencent. A empresa que opera o aplicativo chinês anunciou que pretende gastar 1 bilhão de yuans (US$ 160 milhões) em incentivos para que motoristas e passageiros usem os seus serviços.
De Nova Delhi ao East Hampton, o Uber e seus concorrentes estão enfrentando os órgãos reguladores que os baniram. Alguns governos receiam que o Uber não ofereça proteção adequada aos passageiros, deixando de verificar os antecedentes dos motoristas e de exigir a contratação de seguros; outros querem proteger o monopólio local de suas frotas de táxis.
A aposta do Uber é que sua popularidade entre passageiros e motoristas acabará por vencer essas objeções - de fato, na semana passada, os motoristas do Uber, em Nova Delhi, protestaram contra operações de repressão ao serviço. É arriscado imaginar que as regras sobre o transporte de passageiros serão relaxadas no mundo inteiro. Com objetos, porém, a história pode ser outra. © 2015 THE ECONOMIST LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. TRADUZIDO POR ALEXANDRE HUBNER, PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM.
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