A regulamentação do trabalho feminino aconteceu somente em 1943 e os reflexos dessa lei tardia são sentidos até hoje. A história do trabalho feminino é marcada pela luta por reconhecimento de direitos civis e pelo reconhecimento da nossa existência como válida e digna - que não precisa ser representada por um homem - o que por sua vez aconteceu somente com a Constituição Federal de 1988.
O acesso ao mercado de trabalho não vem sem ônus, nasce nesse momento a figura do assédio e tantas outras barreiras ligadas a estereótipos e expectativas de gênero.
Quando estamos em carreiras lidas como masculinas, barreiras e desafios são ainda maiores e nesse caso, quando as ferramentas discriminatórias, não conseguem atacar nossas habilidades técnicas. Elas atacam o nosso comportamental e é aqui que somos apontadas como emocionalmente instáveis, pouco confiáveis, intuitivas demais, pouco ou muito assertivas, pouco ou muito práticas, entre outros - tudo vai depender do viés do nosso observador.
Durante um período da minha carreira eu acreditei piamente na possibilidade de avançar sem esbarrar em qualquer obstáculo subjetivo demais que não pudesse ser derrubado com lógica, até o dia em que me deparei com essa resistência invisível que na falta de justificativas objetivas ataca o mais íntimo em nós: nossa subjetividade.
Foi num momento importante da minha jornada que percebi que estar na liderança não era sinônimo de liderar, isso porque em dado momento minhas decisões passaram a ser estrategicamente filtradas antes de chegar ao gestor do cliente.
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Esse gestor não gostava da maneira assertiva com a qual eu apresentava meus resultados, no ponto de vista dele eu era assertiva demais e delicada de menos, e por essa razão ele preferia conversar com um colega que cuidava da mesma conta, mas não da estratégia dela. Em resumo, nas reuniões com esse cliente o meu colega apresentava os números que eu alcançava, era meu intérprete para que o cliente pudesse se sentir mais à vontade.
O desconforto com a liderança feminina é um sintoma
Esse cliente que apresentou resistência à minha liderança não está sozinho, o desconforto que ele sentiu é compartilhado por 3 entre 10 brasileiros. Um levantamento sobre igualdade de gênero elaborado pela Ipsos e que analisou 90 países apresenta a posição do Brasil no ranking: abaixo de Índia, Coreia do Sul e Malásia. Aqui, 27% dos brasileiros se sentem desconfortáveis quando a chefe é uma mulher. Quando a análise é feita por gênero, a insatisfação com uma chefia feminina é apontada por 24% das mulheres e por 31% dos homens.
O nome do desconforto é viés inconsciente, mas ele não importa muito aqui nesse artigo, o importante para nós é investigar a causa desse que é um sintoma da nossa sociedade.
Numa realidade hierarquizada como a nossa em que atribuímos valores a características humanas e colocamos todas elas num ranking, é sintomático o desconforto com uma mulher numa posição cujas habilidades para tal estejam todas ligadas ao masculino. Mulheres cuidam e homens provêm - essa máxima é fundante na nossa estrutura e me parece pouco inteligente que em 2020 estejamos perpetuando um paradigma que não se sustenta na primeira investigação mais robusta.
Nossa contradição está na incapacidade de nos entendermos como parte do problema e da solução, isso não nos permite avançar.
Quando uma mulher fala sobre a assertividade e o quanto ela é importante, aplaudimos. Quando essa mesma mulher é assertiva conosco, torcemos uma pouquinho o nariz. Se essa mulher for negra, a nossa reação é ainda mais veemente no sentido de declarar nosso incômodo.
Quando uma mulher fala sobre a importância das negociações e como fazer, ouvimos atentos e atentas. Quando essa mulher começa uma negociação complexa conosco, não nos sentimos muito à vontade.
Quando uma mulher fala sobre a importância de colocar limites e de saber dizer não, queremos ser como ela. Quando uma mulher impõe limites e nos diz não, invariavelmente vamos julgá-la como um pouco grosseira demais.
Num cenário como esse talvez seja mais importante treinar as pessoas para que sejam lideradas por uma mulher, e menos importante fomentar a liderança feminina. Será que nossa capacidade relacional está diretamente conectada com a nossa avaliação enviesada dos gêneros e seus papéis? Se assim o for, eu sinto informar que não temos a habilidade que acreditamos ter, porque gênero não define comportamento.
Precisamos que nossas habilidades relacionais sejam conscientemente trabalhadas de maneira que a equidade seja um objetivo comum relacionado com nossa capacidade de buscar um novo paradigma para a sociedade, dessa mais inclusivo, justo e equânime. Assim sendo, faço um alerta: nem sempre nos programas de equidade de gênero precisamos treinar mulheres para liderar, talvez precisemos deixar que elas liderem treinando toda a organização.
Agora olhe bem para dentro de si, avalie seus desconfortos e responda: você está pronta(o) para uma liderança feminina?
* Ana Bavon é advogada especialista em direitos civis e integrante da Comissão de Ética, Diversidade e Igualdade do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE). Especialista em estratégias de Diversidade e Inclusão (D&I) em empresas, é fundadora e CEO da B4People Cultura Inclusiva.
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