As notícias da crise europeia são alarmantes e transmitem a imagem de rápida desconstrução do Estado do Bem-estar Social, marca de civilização que vem orientando as tentativas de desenvolvimento ao redor do mundo. "Se o Estado Social está em crise e seu fim parece iminente nos países que foram seu berço, que perspectivas de enraizamento tem em países periféricos, como o Brasil?," pergunta a professora Célia Lessa Kerstenetzky, em seu livro O Estado do Bem-estar Social na Idade da Razão, recém-lançado pela editora Campus. Trata-se de um trabalho engajado, "assumidamente uma defesa do Estado do Bem-estar, do seu valor histórico e sua contemporaneidade", que sustenta a tese de que, "mais do que nunca, o Estado do Bem-estar é necessário para garantir direitos diante dos novos riscos sociais, ao mesmo tempo que é chamado a imaginar soluções que garantam sua sustentabilidade financeira e política".O engajamento dos intelectuais é hoje, infelizmente, associado à falta de rigor analítico que compromete argumentos e conclusões. Não é o caso da professora Célia, que esmiúça o tema sem concessões ao panfleto e faz advocacia social de alto nível, pautada pela melhor tradição da ciência social de dialogar com base na análise histórica e em sólidas evidências empíricas. O livro retira o debate sobre o Estado do Bem-estar da esfera contábil e, sem desconsiderar a importância do financiamento e das restrições de recursos, o põe no elevado plano da construção e dos rumos da civilização.Como "invenção política", a construção do Estado do Bem-estar enfrenta restrições, segue percursos e motivações diversas e por isso se apresenta com múltiplas configurações, e não necessariamente como reprodução do modelo social democrata europeu ao qual é comumente associado. O reconhecimento de certo hibridismo é importante para avaliar a coerência interna das várias experiências e orientá-las para enfrentar os problemas sociais específicos de cada país, e não para tentar reproduzir o modelo mais avançado.Outro aspecto significativo da argumentação é "a noção de bem-estar social como uma condição geral que se alcança pela prevenção de patologias sociais, como pobreza e desigualdade, mais do que pela cura; pela oferta de oportunidades gerais, mais do que pela assistência; e por meio de ações que promovam as condições sociais do autorrespeito e da integração social, sem gerar diferenciações e alienação".A aplicação dessa noção causaria uma reviravolta na política social do Brasil, que ainda não consegue curar, proteger e muito menos prevenir a reprodução da desigualdade e da pobreza, em parte por equívocos de uma orientação determinada mais por uma lógica de gasto corrente que de investimentos, de intervenções desenhadas mais para produzir colheitas políticas imediatas que benefícios duradouros."Será que o Estado do Bem-estar não pressupõe o desenvolvimento econômico?" A pesquisa "revelou que muitos países usaram o Estado do Bem-estar, suas políticas, seus programas e instituições para promover o desenvolvimento econômico". Eis um novo desafio: transformar a construção do Estado Social em alavanca desenvolvimentista, dando novo sentido a muitas das ações tão custosas como ineficazes, que não resistiriam à análise da "coerência da intervenção pública" a que se refere a professora na defesa do Estado do Bem-estar.Os tempos são difíceis, exigem e provocaram mudanças qualitativas e quantitativas tanto no alcance das intervenções quanto no financiamento. Mas as mudanças não são lineares, pois, ao lado de "cortes em programas e privatização de políticas sociais", registra-se também "expansão significativa de outros programas, principalmente em serviços". A pesquisa não confirmou o desmonte e mostrou que as respostas têm sido de fato afetadas pela economia política dos países, mas "que houve expansão em áreas novas" e que o Estado do Bem-estar segue vivo e é hoje mais necessário do que antes para assegurar inclusive o bom funcionamento da economia. Precisa continuar se reinventando.