Senso de missão?

Aflito com a torrente de más notícias, não ocorreu ao Planalto melhor ideia do que passar a maquiar os dados de disseminação da covid-19

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Por Rogério L. Furquim Werneck

Engolfada pelo turbilhão da pandemia, da recessão e da crise política, a Nação assiste, estarrecida, à escalada de desatinos que continuam a marcar a forma com que o governo vem lidando com o devastador alastramento da covid-19.

Na foto movimentação em lojas na 25 de março. A Prefeitura de São Paulo autorizou o funcionamento do comércio de rua a reabrir. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

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Basta acompanhar o que tem ocorrido em outros países, inclusive vizinhos, para perceber quão desastrosos foram os equívocos aqui cometidos nessa frente de batalha. E é preciso ter em conta que, ao amplificar as proporções da pandemia e alongar sua fase mais crítica, o governo vem condenando o País a enfrentar uma recessão cada vez mais profunda e um quadro fiscal que se torna a cada dia mais alarmante.

Tendo apostado no discurso irresponsável de desdém pela pandemia e na fantasia de poder empurrar o ônus político da recessão para governadores e prefeitos, o presidente parece ter-se dado conta, afinal, de quão impensada se revelou sua aposta. E já não esconde sua crescente apreensão com o desgaste político que o avanço da pandemia vem impondo ao governo.

Aflito com a torrente de más notícias, não ocorreu ao Planalto melhor ideia do que passar a maquiar os dados de disseminação da covid-19, acompanhados a cada dia, com crescente interesse, pela opinião pública. E é espantoso que tenha encontrado no Ministério da Saúde quem se prestasse a levar tal desatino adiante.

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Tendo já se defrontado com dois médicos que se recusaram a contemporizar com seus desmandos, o presidente preferiu manter como ministro interino da Saúde o oficial-general de intendência que vem tripulando altos cargos do ministério com dezenas de militares.

Será lamentável se, no combate à pandemia, militares continuarem a ser mobilizados para preservar as linhas de suprimento da longa marcha de insensatez que vem sendo promovida pelo governo Bolsonaro, e permitir que o País se embrenhe ainda mais no terreno da irracionalidade.

O desatino, já sustado pelo STF, enseja uma discussão mais ampla sobre a forma como, no Brasil, militares encaram o papel que lhes cabe quando nomeados para altos cargos públicos civis no governo federal. Há boas razões para crer que, em geral, percebem sua nomeação como missões a eles atribuídas pelo presidente da República, seu superior hierárquico máximo, como comandante em chefe das Forças Armadas.

O problema é que isso os deixa não só em posição desconfortável para se opor a encaminhamentos inadequados de certas questões, como resistentes a pedir demissão. E, portanto, mais vulneráveis a manipulações do presidente. Não é por outra razão que militares de todas as patentes, do Ministério da Saúde ao Palácio do Planalto, vêm sendo progressivamente arrastados para constrangedor comprometimento com os descaminhos do governo Bolsonaro.

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Não faltará quem alegue que não há o que fazer a respeito. Que a percepção do cargo público civil como uma missão da qual não se pode desvencilhar é intrínseca aos militares. Não é uma alegação convincente. No próprio governo Bolsonaro já houve vários militares cujas reações não se enquadraram nesse padrão. Resistiram ao que deles foi exigido e acabaram saindo do governo.

É bom, também, ter em conta o que vem ocorrendo nos EUA, num governo tão caro ao Planalto. Ao longo do mandato de Donald Trump houve muitos casos de militares que se recusaram a compactuar com os desígnios do presidente. E que acabaram se demitindo ou sendo exonerados. Ou vindo a público para se retratar, como fez agora, com grande repercussão, o general Mark Milley, no mais alto comando militar dos EUA.

Pobre do País cujo presidente não teme que ministros e ocupantes de altos cargos públicos se demitam. No caso do governo Bolsonaro, é mais que sabido que, na área econômica, as coisas só puderam ser mantidas sob relativo controle porque o presidente sempre temeu que um abuso maior de sua parte pudesse levar à demissão do ministro da Economia. Por fantasioso que seja, vale indagar: como teria sido este governo se, desde o início, Bolsonaro estivesse tomado do mesmo temor em relação aos demais ministros?*ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO 

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