Quem quiser saber os planos da diplomacia brasileira para 2008 talvez deva perguntar diretamente ao coronel Hugo Chávez, presidente da República Bolivariana da Venezuela, fonte de luz dos presidentes brasileiro, boliviano e equatoriano e principal refinanciador da dívida pública argentina. O governo brasileiro dedicou o fim de 2007 e o começo de 2008 ao serviço dos objetivos políticos do grande líder vizinho. O esforço deverá continuar nos próximos meses. Se derem certo, o Mercosul será subordinado oficialmente aos objetivos do bolivarianismo - seja lá o que for - e só celebrará acordos comerciais aprovados pelo novo chefe. No dia 9 de dezembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou em Buenos Aires a ata de criação do Banco do Sul, invenção de Chávez. No dia seguinte, em seu programa semanal de rádio, defendeu a criação do banco repetindo um argumento dos presidentes da Venezuela, da Bolívia e do Equador: "Nós não podemos ficar dependendo do Banco Mundial ou do FMI." Segundo o ministro da Fazenda, Guido Mantega, a nova instituição não deverá assumir funções típicas do Fundo Monetário Internacional, mas o presidente brasileiro não parece dar atenção a esse detalhe. Poucos dias depois, em Caracas, ao lado do guia espiritual, o presidente Lula justificou os ataques do colega boliviano ao "imperialismo brasileiro" e falou sobre o dever das maiores economias sul-americanas de ajudar as mais pobres a "dar um salto de qualidade". A escala seguinte de Lula seria na Bolívia. No dia 27, em Buenos Aires, o ministro Mantega reuniu-se com o colega argentino e discutiu o montante de capital necessário ao Banco do Sul - algo entre US$ 7 bilhões e US$ 10 bilhões. Brasil, Argentina e Venezuela, segundo ele, deverão ser os maiores contribuintes. Como se tomarão as decisões no banco ainda não foi decidido, mas esse parece um pormenor sem muita importância para o governo brasileiro, acostumado a ceder às pressões da vizinhança. Mas 2007 não poderia terminar sem o cumprimento de mais alguns itens da agenda bolivariano-brasiliense. Num jantar de fim de ano com políticos da base aliada, o presidente Lula pediu aos senadores um esforço especial, neste semestre, pela aprovação do ingresso da Venezuela no Mercosul. Depois de perder no Senado a renovação da CPMF, o presidente deve ter julgado mais prudente formular esse apelo. Em 2007, o ato final de fidelidade ao grande líder seria a participação brasileira no circo promocional montado pelo presidente venezuelano para o resgate de três prisioneiros das Farc, antigamente conhecidas como Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Por algum motivo não revelado os seqüestradores decidiram não soltar os prisioneiros, mas a responsabilidade pelo fracasso foi atribuída pelas Farc, pelo presidente venezuelano e pelo ex-presidente argentino Néstor Kirchner ao governo colombiano. O Itamaraty lamentou em comunicado oficial o fracasso da missão, atribuindo-o vagamente a "circunstâncias". A nota não esclarece quais teriam sido as "circunstâncias", mas o leitor pode conjecturar sobre a opinião do governo brasileiro com base nos bem conhecidos vínculos entre o PT e as Farc. Foi a nota número 1 de 2008 do Ministério de Relações Exteriores. O representante brasileiro na missão de resgate, o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, também lamentou o desfecho, mas apontou um resultado positivo: "Ao menos colocamos o tema das negociações humanitárias na ordem do dia." Essa frase seria mais convincente se o governo petista houvesse demonstrado há muito mais tempo algum interesse pelos prisioneiros das Farc e houvesse oferecido, também há mais tempo, alguma colaboração ao governo colombiano. Quanto ao sentido de "humanitário", é um mistério. Para os parentes e amigos das vítimas do acidente da TAM, a palavra deve soar como mais um escárnio do assessor Top Top. Em 2007, o Mercosul celebrou seu primeiro acordo de livre-comércio com um parceiro de fora da América do Sul. Foi o acordo com Israel, e o governo israelense se esforçou para concluir as discussões antes do ingresso da Venezuela. A agenda inclui, como próximo passo importante, a retomada de negociações com a União Européia. Já tem sido complicado articular os interesses dos quatro sócios plenos do bloco - Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Será muito interessante ver como se incluirão no jogo os interesses venezuelanos, se o governo de Chávez nem sequer assumiu, até hoje, os compromissos normalmente exigíveis de qualquer sócio. Mas o país do Grande Chefe não será, provavelmente, um sócio qualquer. *Rolf Kuntz é jornalista
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