
Aos 53 anos, Belmiro Gomes, CEO do Assaí, está prestes a completar 40 de carreira. Começou a trabalhar por necessidade familiar - o pai havia sido diagnosticado com uma grave doença. Ainda na infância, foi boia-fria, engraxate e vendedor de sorvetes. Hoje, a realidade é bem diferente, diz que segue na ativa porque gosta do que faz. Ao Estadão, afirma se considerar “um carro novo com alta quilometragem”. Para manter a longevidade profissional, adotou um estilo de gestão pouco convencional entre muitos CEOs: procura as más notícias e prefere estar cercado de pessoas que discordem dele.
A razão para a estratégia, segundo o executivo, é evitar o que considera ser o maior risco para um líder. “O poder pode ser um grande inimigo para quem chega a posições de liderança. Se você se isola, acaba vivendo a solidão do poder. E o poder pode ser muito solitário”, afirma.
Outro hábito do CEO é buscar feedbacks informais de funcionários e clientes. Ele não se contenta com o primeiro “tudo bem” e costuma insistir até encontrar algum ponto de melhoria. Inclusive, antes mesmo desta entrevista começar, ele abordou o fotógrafo do jornal, Werther Santana, em busca de saber qual unidade do Assaí frequentava e se tinha alguma reclamação. E, claro, não aceitou um simples “tudo bem” como resposta.
Confira trechos da entrevista:
Como foi o início da sua carreira?
Nasci em Santo André (SP), mas fui para Maringá (PR) aos 9 anos. Meu pai desenvolveu uma doença imunológica rara. Trabalho desde os 9 anos de idade. Para conseguir pagar o material escolar na 4ª série, fui vender sorvete, pastel. Também fui engraxate.
Brinco que meu primeiro emprego foi bom porque a empresa me deu um carro para trabalhar e pagava 20% de comissão. Vendia sorvete na rua, na sorveteria Beija-Flor, em Maringá (PR).

Também fui boia-fria durante três anos, trabalhando na colheita de algodão. Aos 13 anos, fui registrado (teve a carteira de trabalho assinada). Em maio deste ano, irei completar 40 anos de registro em carteira. Comecei como office boy em uma empresa de eletrodomésticos. Em paralelo, aprendi programação e computação, em meados de 1985.
Belmiro Gomes, CEO do Assaí Atacadista
Para complementar a renda, além de estudar, eu também fazia bicos. Também atuei por um ano na Musamar (rede de supermercados). Na época, o Atacadão estava fazendo uma migração de sistema. Entrei no Atacadão em 1988 como digitador. A rotina era puxada.
Não tenho curso superior, só ensino médio, era muito difícil conciliar tudo isso.
No Atacadão, fiquei por 22 anos. Passei por diversas áreas, desde a parte financeira, supervisão de vendas, compras, gerência, até que, em 2000, comecei a fazer trabalhos para a diretoria. Os proprietários ficavam aqui em São Paulo e me transferiram para cá como assessor da diretoria, em 2002.
Como foi a transição para o alto escalão do mundo corporativo?
Me tornei presidente da companhia (Assaí) em torno dos 40 anos de idade. O que normalmente não ocorre. Mas também comecei muito jovem. Ou seja, sou como um carro que não tem tanta idade, mas a quilometragem é alta.
O fato de ter trabalhado no Atacadão, que tinha três famílias como donas - o seu Paulo, o seu Herbert e o seu Farid -, foi fundamental. Fazia desde o serviço de expansão, quando o Atacadão ia entrar em novas praças, até a parte tributária e o desenvolvimento de sistemas. Era um relacionamento com três famílias, e eu fazia o meio de campo.
Isso te ajudou?
Tive um aprendizado direto com os donos da companhia. Isso me deu uma bagagem de empreendedorismo e, principalmente, permitiu ser eclético em várias frentes.
Sempre tive facilidade para ser autodidata e para entender processos, tanto lógicos quanto humanos. O que me ajudou muito foi equilibrar o raciocínio lógico com um grande entendimento humano.
Belmiro Gomes
Em 2004, os proprietários do Atacadão decidiram vender a companhia. Liderei o processo de preparação da empresa para a venda, que ocorreu em 2007, para o Carrefour.
Nesse período da venda, tive contato com líderes de outras empresas interessadas, como o Enéas Pestana, que era o presidente do GPA (Grupo Pão de Açúcar) na época, e o pessoal do Walmart. Tanto que, depois, quando eles compraram o Assaí, lembraram de mim e fizeram o convite para assumir o Assaí, que era uma operação ainda muito pequena. Entrei no Assaí em 2010.
Já cheguei para ser presidente, mas atuei como diretor comercial por seis meses. A transição de cargo era meio que um acordo, porque o Assaí estava deficitário. Em fevereiro de 2011, assumi a presidência do Assaí.
Era uma companhia com cerca de R$ 3 bilhões em faturamento. Tínhamos 38 ou 39 lojas. Nesses 14 anos, conseguimos fazer uma transformação gigantesca, não somente no Assaí, mas no próprio formato do atacarejo. Antes, era mais espartano, voltado apenas para a população de baixa renda. Conseguimos transformar isso. Hoje, o Assaí tem 302 lojas, 85 mil funcionários e mais de R$ 80 bilhões em faturamento.
Com um perfil mais versátil, como define o seu estilo de liderança?
Nós não estamos no exército. As pessoas fazem a empresa. Na vida, você vai aprendendo que não importa só o que você fala. Importa muito mais a forma como você fala e as suas ações. Principalmente os colaboradores vão observar se o seu discurso bate com a sua prática.
A gente tenta se manter muito próximo, buscando uma liderança pela inspiração. Mesmo que isso leve mais tempo do que simplesmente dar ordens. Obviamente, você vai ter sucesso com alguns indivíduos e com outros não. Mas a liderança é pela inspiração.
Com todos os cuidados do ponto de vista técnico, pode parecer redundante dizer, mas o que faz a diferença são as pessoas. O que nos diferencia em relação ao Atacadão? É a cultura.
Belmiro Gomes
E não é porque as pessoas aqui são melhores. Seria arrogante dizer: ‘Nossas pessoas são melhores.’ O que faz a diferença para a companhia são as nossas atitudes enquanto pessoas. Na medida em que outros líderes também absorvem isso, a cultura acaba cascateando.

Antes de começarmos a entrevista, você mencionou que nas visitas a bancos e outros estabelecimentos, costuma passar pelas copas para conversar com as pessoas e pedir feedbacks e eventuais reclamações. Você também adota essa prática dentro do Assaí?
Muito. Quando vou às lojas, sento para almoçar com o pessoal, proíbo, inclusive, as pessoas da diretoria de almoçarem fora, vai sentar junto. Tem um exemplo clássico da cadeira. Em uma visita a uma unidade, uma operadora de caixa reclamou da cadeira depois que insisti umas três vezes, porque ela dizia que estava tudo bem. Nunca acredito no primeiro ‘tudo bem’.
Eu disse: ‘Fala a verdade’. Talvez ela tenha pensado assim várias vezes: ‘Ai, se eu estivesse com o presidente, ia reclamar disso, disso e disso. Pronto, estou aqui do seu lado. E aí?’.
Naquela situação a reclamação foi a respeito da cadeira. A cadeira não era confortável para quem ficava muito tempo atendendo clientes. Isso resultou na troca de cadeiras de todas as unidades do Brasil.
Por isso não acredito no primeiro ‘tudo bem’. Quem está vendo a operação vai ter detalhes que a diretoria não percebe, principalmente em uma companhia muito grande.
Como esse comportamento o fez evoluir enquanto líder?
Muita humildade. Você precisa ter humildade e cautela com o poder para não ficar fechado em si mesmo. Quando você percebe, já está vivendo em um mundo à parte. É como na música do Cazuza: “Tua piscina está cheia de rato, tuas ideias não correspondem aos fatos…”
Então, há sempre uma busca por entender de fato a realidade, mesmo que você enfrente um problema que não consegue corrigir ou que não dá tempo de resolver. Acho que minha origem me ajuda muito a me conectar com o cliente e com o funcionário. Percebo que a empatia é genuína.
Você comentou sobre o perigo do poder. O que faz para lidar com o ego e o sentimento de poder que cercam o cargo de CEO?
Esse é sempre um ponto de atenção. Acho que a pessoa precisa ter autocuidado e se cercar de pessoas que discordem dela e falem o que não quer ouvir. É fundamental ser aberto.
É importante manter a humildade para não ficar fechado e cego dentro de uma bolha. O orgulho humano é um dos piores inimigos.

O orgulho, junto com a inveja e outros sentimentos, pode realmente cegar a pessoa. O primeiro passo é entender que ninguém é capaz de fazer nada sozinho. Se você não motivar as pessoas ou não tiver apoio, não importa se é o presidente da companhia, por mais que trabalhe duro, jamais será capaz de alcançar o melhor sozinho.
Belmiro Gomes
A gente também comete erros e está sempre buscando aprimoramento nesse sentido. Mas o poder pode ser um grande inimigo para quem chega a posições de liderança. Se você se isola, acaba vivendo a solidão do poder. O poder pode ser muito solitário.
O que busca em um profissional que deseja crescer dentro da empresa? Há características que considera indispensáveis?
Tratamento humano, resiliência, não desistir no primeiro desafio, nem no segundo, nem no terceiro... Na realidade, não desistir nunca. Difícil? Vai ser, com certeza.
A autoavaliação é fundamental para entender se a insatisfação que você sente está realmente no outro ou em você. É a questão da sua percepção sobre si mesmo.
Em uma companhia, assim como na vida pessoal, você será casado, separado, promovido ou demitido com base na percepção que o outro tem de você. Não importa se você acredita estar certo. Claro, não dá para simplesmente aceitar tudo calado, mas é importante avaliar internamente.
É essencial ter autoconhecimento, capacidade de entender pessoas, visão, persistência e vontade de aprender. Isso foi essencial na minha trajetória. O que tentamos passar para os outros são justamente as atitudes que me levaram a ter uma progressão.
Belmiro Gomes
Essa progressão não veio necessariamente de uma grande ambição. Foi muito mais no sentido de ser reconhecido pelo que eu fazia. Todo mundo quer ser reconhecido pelo seu esforço. O crescimento, assim como a evolução financeira, acabou sendo consequência do desejo de aprender mais, da curiosidade e da vontade de fazer melhor.
Você considera a resiliência uma das habilidades indispensáveis para um profissional. Como mantém a sua resiliência em meio às mudanças do mercado e da empresa?
Acho que isso também tem um pouco a ver com a minha origem e pelo fato de ter passado por um período difícil, onde os dias eram complicados e o futuro parecia muito tenebroso. Meu pai estava em uma situação muito difícil por causa do quadro de saúde, minha mãe precisou parar de trabalhar para apoiá-lo. Havia uma angústia de poder crescer.
Então, obviamente, isso traz uma bagagem e uma força que segue ao longo dos anos. A vontade de fazer mais, de aprender, de apoiar pessoas e de incentivar o crescimento.
Se eu olhar para boa parte da nossa diretoria, das pessoas que estão aqui, são pessoas que também têm uma trajetória muito similar. Meu VP de operações era office boy comigo lá em Maringá, estamos trabalhando juntos há 30 anos. Nossa diretora de Marketing era operadora de caixa no Atacadão da Vila Maria. Então, tento identificar pessoas que possam crescer.
Não que o objetivo principal seja promover a ascensão social. A ascensão social é consequência se a pessoa tiver as características certas.
Pensando nas discussões mais recentes do mercado de trabalho, a exemplo da jornada 6x1 e o modelo home office. Qual o seu posicionamento a respeito dessas pautas que ganharam mais holofotes nos últimos meses?
Acho que há uma evolução. A CLT precisa ser rediscutida. Chegou a hora dessa revisão, principalmente para as novas gerações, pois talvez já não seja tão aderente. É um tema polêmico. Hoje, você tem uma legislação que talvez nem atenda ao que as empresas querem, e nem ao que o trabalhador deseja.
Se tivéssemos mais flexibilidade para contratar por dia, por exemplo, ou para permitir o trabalho intermitente, com uma legislação menos pesada... Estamos falando de uma legislação da década de 50, o mundo mudou muito desde então. Por um lado, garantiu muitos direitos, mas também criou um custo muito alto para o registro formal.
A diferença entre o custo total de um funcionário e o que ele realmente recebe é muito grande quando você soma todos os encargos. O trabalhador não tem essa percepção. Por isso, muitas pessoas da nova geração preferem trabalhos que não exijam uma jornada fixa.

Acredito que o modelo 4x3 é exagerado, o nível de produtividade no Brasil não permite isso, diferente de outros países. Falta uma discussão sobre produtividade e também sobre a burocracia que enfrentamos.
Belmiro Gomes
Mas está chegando o momento de rediscutir tudo isso, de criar contratos mais flexíveis, que permitam, por exemplo, contratar alguém apenas para trabalhar aos finais de semana.
Hoje, o regime é muito rígido, ainda corre o risco de enfrentar ações trabalhistas. É necessário rever isso, ouvindo diferentes setores da sociedade. Basta observar o quanto as pessoas preferem trabalhar como motoristas de Uber ou entregadores do iFood. Mesmo trabalhando bastante, às vezes 12 horas por dia, eles têm a liberdade de decidir: “Hoje não vou trabalhar, vou resolver algo pessoal.”
Isso não é possível com o modelo atual. Então, acho que essa discussão precisa acontecer. É pertinente e já está na mesa. Mas não é simples nem fácil.
Pensando na vida pessoal, como você equilibra sua rotina de executivo?
É sempre um esforço. No fim das contas, a verdade é que você nunca consegue tirar nota 10 em tudo. Ao longo da vida, você vai passar com sete em todas as matérias.
Óbvio que a jornada toda acaba impactando muito a vida pessoal. O setor em que trabalho é muito intenso e exigente. Já passei por períodos em que trabalhei sábado e domingo. Hoje reservo o fim de semana para a vida pessoal.
Falta talvez um hobby melhor, mas atualmente tenho uma casa em Bragança (SP), perto da represa, onde gosto de navegar, andar de barco, jet ski.
Sou muito curioso com carros, tenho alguns antigos. Gosto de desmontar. Recentemente estava consertando o freio, desmontei tudo. Acho que distrai, tira um pouco do foco.
Durante a semana tenho tentado caminhar de duas a três vezes, mas confesso que posso estar com a nota 4 nisso. A intenção está sempre lá, mas nem sempre consigo.
Aos finais de semana, tento me desligar do celular. Claro, preciso manter o celular ligado, mas desativo as notificações. As pessoas sabem que, se for uma emergência, podem ligar. Caso contrário, evito ficar olhando o celular, porque a probabilidade de me dispersar é grande. De novo, é uma questão de cuidado.

Qual é o seu conselho profissional?
Talvez seja mais importante se preocupar menos com a meta a ser alcançada, ou seja, com chegar a qualquer custo, e muito mais com a forma de chegar lá. Saber lidar com pessoas, independentemente da sua competência técnica, é essencial.
Entender o ser humano, ouvir o ser humano, considerando obviamente os prós e os contras, acho que é indiscutível.
Buscar sempre aprimoramento e entendimento, cultivar a curiosidade e não ter medo de errar, de fazer movimentos que muitas vezes vão te trazer conhecimento, se você conseguir entregar resultados. E os resultados não se referem apenas ao ponto de vista financeiro - se você entregar, será recompensado.
Obviamente, você também precisa avaliar se o local onde está oferece caminhos. Por isso, insisto muito em dar caminhos, porque, se eu também não fornecer essas opções, as pessoas podem sair.
