Ex-presa cria instituto para capacitar ex-detentos para o mercado de trabalho

Fundadora do Instituto Responsa, que já atendeu mais de 1.800 egressos e gerou mais de mil vagas de emprego desde 2018, viveu por 15 anos no mundo do crime; entre os mais de 820 mil presos no Brasil, 42% são reincidentes

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Por Marina Dayrell 

No primeiro andar de um prédio com ares startupeiros em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, lê-se escrito na parede: “O Civi-co enquanto comunidade deve estimular a empatia, praticar a humildade, inspirar a solidariedade, interpelar para a generosidade e mobilizar para a prática da justiça social norteada pela misericórdia”. O lugar em questão é um hub de inovação de negócios de impacto e ativistas sociais, entre eles o Instituto Responsa, que insere egressos do sistema prisional no mercado de trabalho. 

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O nome por trás do instituto é o de Karine Vieira, assistente social de 40 anos. A área em que empreende, em uma sociedade como a brasileira, pode ser considerada por muitos como, no mínimo, polêmica. Mas a história de vida de Karine, misturada com os números do instituto e com as estatísticas do sistema penitenciário brasileiro atestam a necessidade da existência de organizações como a dela. 

“Nós precisamos criar pontes na sociedade. A grande maioria que passou pelo sistema prisional foi por falta de acesso e por não conhecer outras realidades. Eu quero ter uma sede do Instituto Responsa um dia, mas eu gosto de estar nesse prédio hoje porque, quando as pessoas vêm para cá para fazer uma capacitação, elas chegam em um lugar onde, na maioria das vezes, elas nunca pensaram em entrar”, conta. 

Depois de viver por 15 anos no crime, Karine Vieira criou o Instituto Responsa para inserir egressos do sistema penitenciário no mercado de trabalho. Foto: Helcio Nagamine/Estadão

Olhar para a questão carcerária no Brasil pode passar por alguns caminhos, entre eles – como a parede do Civi-co diz – o da empatia e da solidariedade ou, para os mais céticos, o dos números. Como no primeiro caso fala-se de características subjetivas que podem ou não afetar uma pessoa, colocar os dados na ponta do lápis pode fazer mais sentido. 

Hoje, no Brasil, existem mais de 820 mil pessoas presas, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Dessas, ao menos 42% são reincidentes, ou seja, já haviam sido presas ao menos uma vez, conquistaram a liberdade e voltaram para o cárcere. A reincidência não só é realidade no País, como também é um dos motores que alimentam uma série de problemas sociais, que afetam todo mundo, como a violência.

A vida de Karine Vieira tem muito a ver com esses dados. Por 15 anos, ela viveu no mundo do crime, principalmente no tráfico. Foi presa uma vez, em 2005. Um ano depois, foi absolvida, mas, ao sair da cadeia, ainda passou dois anos vivendo de atividades ilícitas. 

“Eu sei que parte dessa absolvição teve a ver com o fato de eu ser branca, isso é um privilégio na nossa sociedade (negros são 63% entre os presos no Brasil). Eu sou de família de classe média baixa, mas não deixo de ser de classe média, o que é diferente, porque eu nunca fui moradora da comunidade (favela). Eu morava na periferia, mas não na comunidade. E eu tinha advogado particular, o que faz com que você tenha muito mais recursos”, conta.

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Foi em 2018 que Karine decidiu que iria mudar de vida. Na época, ela já tinha dois filhos, uma de sete anos e um bebê. Olhou para os prováveis legados que ela poderia deixar para eles: a volta ao sistema carcerário ou a morte. Uma terceira opção parecia também muito difícil, mas foi a aposta que fez: matriculou-se no supletivo para finalizar o Ensino Médio e conseguiu um ‘bico’ em uma papelaria.

“Foi um momento difícil, porque eu já não reconhecia mais as minhas habilidades fora do mundo do crime. Eu tive essas oportunidades e eu sempre digo que oportunidades mudam as histórias, sejam elas positivas ou negativas. Até hoje eu não sei se meus ex-chefes sabiam que eu sou egressa do sistema. Tenho até vontade de perguntar se, caso eles soubessem, teriam me contratado.”

A parede de entrada do prédio do Civi-co, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. O espaço é umhub de inovação de negócios de impacto e ativistas sociais, entre eles o Instituto Responsa, que insere egressos do sistema prisional no mercado de trabalho. Foto: Marina Dayrell/Estadão

De lá para cá, ela saiu da papelaria, conseguiu uma bolsa de estudos de 100% para cursar Serviço Social, trabalhou em um escritório de advocacia por quatro anos, contribuiu com o AfroReggae e ajudou núcleos de medidas socioeducativas. Com apoio e investimento do Instituto Ação pela Paz e do Humanitas 360, entidades que trabalham na reabilitação de presidiários, Karine transformou o trabalho que já fazia como pessoa física no Instituto Responsa.

Hoje, trabalha com outros 11 funcionários, além de uma equipe jurídica que atua voluntariamente. Por lá, ela tem conseguido quebrar o sistema: a taxa de reincidência no crime entre os assistidos pelo instituto fica entre 3% a 5%.

A ponte com o mercado de trabalho

Para criar pontes, o cerne do trabalho do Instituto Responsa é a empregabilidade, mas, antes de chegar nela, eles também oferecem outras assistências. O atendimento dos egressos, que geralmente chegam por indicações no boca a boca ou pelas redes sociais, começa com o preenchimento de um formulário pelo Whatsapp e pelo acolhimento. A rede foi escolhida por ser a mais comum entre quem tem acesso à internet.

Com o formulário preenchido, um funcionário do instituto entra em contato para tirar possíveis dúvidas e encaminha a pessoa para a equipe psicossocial. Eles entendem quais são as demandas, já que pode haver a necessidade de incluir um profissional do jurídico, alguém para ajudar com alguma documentação ou até mesmo uma ajuda na saúde. Os últimos passos são a capacitação e a empregabilidade.4

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No programa Fênix, focado na capacitação, os profissionais recebem orientações sobre como se portar em uma entrevista de emprego, desde a roupa até a linguagem adequada, e aprendem sobre empreendedorismo e educação financeira. Outras aulas técnicas e comportamentais são dadas pelo próprio instituto – muitas vezes, ministradas por egressos do sistema – e, também, por parceiros, como o Sebrae e o Senai, que oferecem cursos técnicos. 

Uma vez que o profissional já está capacitado, o instituto faz a ponte com as empresas, de acordo com o perfil de cada vaga. Depois que a pessoa é contratada, Karine e a equipe ainda a acompanham por cerca de um ano, para garantir que ela vai conseguir se manter naquele trabalho e corrigir possíveis problemas de cultura ou adaptação nas organizações.

“A gente faz a gestão compartilhada com a empresa. Os gestores nos trazem os pontos que as pessoas precisam melhorar e a gente vai ministrando os módulos de aulas para elas se desenvolverem, tanto na técnica quanto no comportamental. Se uma pessoa não está evoluindo, então vamos desligá-la, dar espaço para outra e vamos treinar um pouco mais aquela que foi desligada”, explica. 

Ter uma gestão compartilhada também ajuda as organizações a prever e lidar com possíveis problemas que talvez elas não perceberiam sem o olhar da equipe de Karine.

“É importante que eles tragam as demandas para nós porque, às vezes, são coisas mínimas que a gente percebe por já ter expertise. Por exemplo, se uma pessoa recebeu o salário e faltou, isso é um ponto importante, porque pode ser que ele vá fazer uso abusivo de alguma substância. Só que ninguém vai chegar na empresa e falar que faltou porque bebeu demais. Isso pode acontecer com qualquer ser humano. Só que, com o meu público, é interessante que eu saiba porque eu consigo trabalhar isso e minimizar as questões, inclusive colocando-o em contato com o núcleo de reparação de danos”, conta Karine.

Em paralelo à gestão, o instituto também presta consultoria para as empresas, principalmente para as equipes de Recursos Humanos. O trabalho é essencial para gerar uma cultura inclusiva, que permita que os profissionais contratados se sintam seguros e se mantenham no emprego. Essa é uma das principais formas de renda da organização, ao lado dos investimentos e dos editais nos quais a empresa se inscreve frequentemente. 

Karine (em primeiro plano, de casaco e calça pretos, camiseta quadriculada) e egressos do sistema prisional ao final de uma palestra no Instituto Responsa. Foto: Divulgação

Desde 2018, quando o trabalho ficou formalizado, o Instituto Responsa já atendeu mais de 1.800 egressos. Mais de 1.400 já passaram pelas capacitações e foram geradas 1.073 oportunidades de trabalho, entre regimes CLT, PJ e freelancers. 

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A maior parte das vagas são operacionais, como ajudante geral, auxiliar de limpeza e construção civil. Segundo Karine, isso acontece porque a maior parte dos egressos têm baixa escolaridade e não possuem experiências em outras áreas. Entre os que chegam até o instituto, 31% têm ensino médio completo, seguidos pelos 28% que não completaram. Apenas 1% têm ensino superior completo. 

Em relação à idade, a maior parte tem entre 26 e 35 anos, seguidos pelos que têm entre 35 e 45 anos. Os negros também são os mais atendidos pelo instituto, representando 40%. São seguidos por brancos, 17%, e amarelos, 0,18%. O restante não fez a autodeclaração. 

O maior desafio do Instituto Responsa hoje ainda é na captação de vagas para todas essas pessoas, mas Karine já percebeu um movimento mais ativo por parte das empresas, que têm procurado a organização para contratar egressos do sistema prisional. Para continuar a mudar a realidade do Brasil, ela faz um apelo: 

“Para que as pessoas sejam efetivamente transformadas, elas precisam ter oportunidade de gerar renda lícita. Senão elas vão retornar para o mundo do crime. No contexto que estamos hoje, principalmente falando bastante de ESG, não adianta a gente esperar que a solução venha só do Estado e da sociedade civil. A gente precisa se unir, e parte dessa união tem que vir das empresas privadas, porque se nós conseguirmos mudar esse contexto, a gente está contribuindo para a diminuição da reincidência criminal e gerando a oportunidade de transformação de vida”. 

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