
O economista Tony Volpon, de 59 anos, professor adjunto da Universidade de Georgetown (EUA) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, não faz parte do grupo de catastrofistas que esperam o apocalipse com a volta de Donald Trump à Casa Branca.
Ele até diz que o aumento de tarifas sobre as importações da China, do Canadá, do México e de outros países, prometido por Trump na campanha eleitoral, pode ter um efeito negativo na inflação e no crescimento americanos, com reflexos globais. Mas aposta que isso não vai ser feito de uma vez só nem começar imediatamente. Vai depender muito também das negociações que deverão ser realizadas por Trump e sua equipe econômica com os principais parceiros comerciais dos Estados Unidos, para diminuir o que eles veem como “assimetrias” existentes nas relações bilaterais.
“Talvez esse processo não seja tão concentrado como parte do mercado está temendo, principalmente os democratas, que estão sempre tentando criar algum tipo de escândalo do tipo ‘ah, o Trump vai destruir a economia e tal’”, afirma. “Tem de dar uma descontada nisso, porque a maioria desses cenários de catástrofe na economia vem de casas bem ligadas ao Partido Democrata, como a Brookings (centro de estudos localizado em Washington). Eu, obviamente, desconto tudo isso.”
Nesta entrevista ao Estadão, Volpon diz que quem quiser entender como funciona a cabeça de Trump tem de ler o seu livro A Arte da Negociação (ed. Citadel), porque ele realmente segue essa cartilha. “Ele bota o revólver na mesa e fala: ‘Vamos começar a negociar’”, diz. “Parte do segredo do Trump é sinalizar que está disposto a fazer coisas malucas. Isso leva o outro lado a reagir para tentar se proteger e acaba sendo uma ferramenta poderosa de negociação.”
Volpon fala também sobre a ideia de Scott Bessent, indicado por Trump para ser secretário do Tesouro, de realizar um acordo entre as principais economias do mundo para baixar o valor do dólar, que muitos analistas consideram como sobrevalorizado, e sobre os efeitos que as medidas tarifárias de Trump podem ter na economia global e nos mercados, inclusive no Brasil. “Sinceramente, você acha que eu vou ‘vender’ Estados Unidos para ‘comprar’ Brasil, com essa zona que a gente está vendo hoje no País? Eu, não”, afirma. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
A tarifa é um instrumento de pressão, de negociação
Com a volta do Trump à presidência, tudo indica que ele vai aumentar as tarifas sobre produtos chineses e de outros países, como ele prometeu na campanha eleitoral. Na sua visão, como isso deve afetar a economia mundial, caso o Trump realmente tome essas medidas?
Eu acredito que, na média, as tarifas realmente vão subir, mas não dá para a gente olhar para essa questão tarifária de forma isolada. A tarifa é um instrumento de pressão, de negociação. Para a gente tentar avaliar qual deve ser o impacto sobre a economia global, tem de entender que isso é parte de uma estratégia maior do governo Trump, de diminuir o que eles acreditam ser as “assimetrias” existentes no relacionamento com certos países que estão levando vantagem sobre os Estados Unidos. O Trump tem essa visão de que países como o Canadá e o México se aproveitam da economia americana e de que isso tem de ser corrigido de alguma maneira – e eu concordo com ele neste aspecto. Essas assimetrias já diminuíram muito, mas ainda existem. Tem coisa séria nessa área lá que eles ainda devem endereçar.
Logo depois da eleição, o Justin Trudeau, primeiro-ministro canadense, foi para Mar-a-Lago (resort do presidente eleito dos Estados Unidos, na Flórida), para participar de um jantar, e o Trump disse: “Olha, a gente está subsidiando o Canadá em US$ 120 bilhões por ano. Por que vocês não viram o 51º Estado americano?”. Obviamente, era uma brincadeira e eu nem sei de onde ele tirou esse número, para ser muito honesto, mas é uma afirmação que reflete bem a visão que eles têm dessa questão.
Na sua avaliação, como deve ser esse processo de elevação tarifária?
Acho que vai ser um processo lento, não vai ser numa tacada só, porque, como eu disse, isso será parte de uma estratégia maior, de diminuir essas assimetrias. Não deverá começar imediatamente nem vai ocorrer de um dia para o outro. E vai depender muito do como os outros países vão responder. Então, é muito difícil prever aonde esse processo vai dar. Se os canadenses, os europeus e até os chineses quiserem jogar o jogo, se eles quiserem entrar em negociações sérias para endereçar essas assimetrias, talvez a gente não veja um aumento tarifário tão forte como foi alentado durante a campanha. Isso vai ser parte da negociação.
A gente sabe que exemplo, que os países da União Europeia têm umas tarifas malucas, especialmente sobre os alimentos. E a gente sabe também que os Estados Unidos são um grande produtor agrícola. Então, o Trump pode falar para os europeus: “Olha, se vocês baixarem as suas tarifas, eu deixo as minhas como estão. Senão, eu vou subir as tarifas do meu lado”. Se essa negociação realmente acontecer, o aumento médio das tarifas pode ser menor do que o mercado teme e do que foi dito pelo próprio Trump durante a campanha.

O que o leva a acreditar que essas questões vão fazer parte de uma negociação maior do governo Trump?
Eu não estou tirando isso da minha pequena cabeça. Estou só interpretando o que o Scott Bessent, que vai ser o secretário do Tesouro do Trump e um ator importante nesse processo, já disse. É claro que haverá outras pessoas envolvidas nisso, toda uma equipe econômica, mas o Scott Bessent vai ser, de certa forma, o chefe desse pessoal. Ele disse “olha, isso são estratégias de negociação. Se as pessoas quiserem negociar de boa fé, a gente pode até baixar as tarifas. Tudo vai depender das negociações”. Um país como o Canadá, por exemplo, que é muito dependente dos Estados Unidos, provavelmente vai querer negociar. Eu acho que o Justin Trudeau ou seu sucessor vai querer negociar. Não vai querer entrar numa guerra comercial com os Estados Unidos, porque vai perder na hora. O caso do México é semelhante.
Talvez, então, esse processo não seja tão concentrado como parte do mercado está temendo, principalmente os democratas, que estão sempre tentando criar algum tipo de escândalo do tipo ‘ah, o Trump vai destruir a economia e tal’. Tem de dar uma descontada nisso, porque a maioria desses cenários de catástrofe na economia vem de casas bem ligadas ao Partido Democrata, como a Brookings. Eu, obviamente, desconto tudo isso.
E a China, que é o principal alvo do Trump, como deve ficar?
O caso da China é mais complicado, porque já teve um desacoplamento (decoupling, em inglês) grande das duas economias, apesar de que ainda tem muita exportação chinesa vindo para os Estados Unidos, de tudo que não é de maior valor agregado e de uso mais intensivo de tecnologia. Toda a parte de alta tecnologia está muito travada pelas sanções que o Trump começou a impor no primeiro mandato (2017-2021) e o (Joe) Biden (ex-presidente dos EUA) ampliou. No caso específico dos carros elétricos, houve um desacoplamento total. A China não exporta carros para os Estados Unidos. Não é como no Brasil, onde todo carro que você vê na rua é chinês. Isso não acontece nos Estados Unidos. Agora, as coisas mais “comuns”, como brinquedos, continuam chegando. Hoje, na Target e no Walmart, tudo ainda é Made in China. Então, já houve um certo desacoplamento, mas ele foi muito setorial. Ainda há muito espaço para o Trump fazer alguma coisa contra a China. Ao contrário do que o Xi (Jinping, presidente da China) acha, os chineses não têm tanta margem de manobra nesse caso.
O que complica no caso da China é que você tem uma concorrência geopolítica e militar dos Estados Unidos com a China que não tem com o Canadá. O Trump olha para o Canadá e vê uma questão meramente comercial, econômica. Ele até deve achar o Trudeau um idiota completo, mas o problema com o Canadá se limita à questão financeira, tarifária. Com a China, não. Tem também uma concorrência militar, um jogo político. É uma questão muito mais complexa. As negociações com o Canadá o Scott Bessent deverá tocar sozinho. Com a China, vai ter o Marco Rubio (indicado por Trump para ser secretário de Estado) e muito mais jogadores na mesa de negociações, porque tem de articular todas essas dimensões. Agora, para entender melhor como funciona a cabeça do Trump nessas questões, todo mundo deveria ler aquele livro dele A arte da negociação, porque ele realmente segue aquela cartilha.
Leia também
Como é essa cartilha do Trump a que o sr. se refere?
Ele chega lá, bota o revólver na mesa e fala: “Vamos começar a negociar”. Neste caso, o revólver na mesa são as ameaças tarifárias. Ele diz: “Olha, eu vou aumentar sua tarifa para 50%. Para mim, não tem nenhum problema fazer isso”, e fica esperando a reação do outro lado. Parte do segredo do Trump é sinalizar que ele está disposto a fazer coisas malucas, que um político mais comum, mais normal, digamos assim, não faria. Um (Joe) Biden (ex-presidente americano) da vida, por exemplo, nunca vai chegar para o chinês e dizer “vou aumentar a tarifa para 50%. Muito menos uma Kamala Harris, que é totalmente apagada. No caso do Trump, as pessoas acreditam que ele vai fazer mesmo o que está dizendo e agem em função disso. É “teoria de jogos” pura. Você passa a ideia de que está disposto a fazer uma loucura e o outro lado reage para tentar se proteger dessa possibilidade. Isso acaba sendo uma ferramenta poderosa de negociação.
Agora, considerando tudo isso que o sr. está falando, que o processo de aumento de tarifas deve ser mais lento, imagino que isso vai gerar muita incerteza no meio do caminho, com um impacto muito negativo na economia global. É isso mesmo?
Vai depender muito da intensidade e do timing das medidas. Várias casas de investimento e de análise de risco já fizeram tentativas de estimar qual seria o efeito disso e há previsões para todos os gostos. O que dá para dizer é que essas questões tarifárias deverão ter um impacto inflacionário imediato e um impacto mais dilatado sobre o crescimento.
Quando você olha para o que aconteceu em 2017 e 2018, no primeiro governo Trump, foi um pouco isso. Então, o pessoal que está tentando fazer essas previsões fala o seguinte: “Olha, nós já vimos esse filme antes, não faz muito tempo, e o que a gente observou foi que, num primeiro momento, a inflação sobe e num segundo momento o nível de atividade econômica cai”. Há um choque negativo de oferta. E, como todo choque negativo de oferta, ele impacta o crescimento e a inflação negativamente, ainda que em momentos diferentes. Por isso, muita gente acredita que, com a adoção dessas medidas tarifárias, o Trump pode estar contratando uma certa desaceleração da economia americana em 2026.
Se o Trump anunciar um aumento de tarifas para a China e outros países de uma vez só, logo na largada do governo, o que pode acontecer?
Se eu estiver errado e esse processo mais dilatado que eu estou achando que vai ocorrer não acontecer e o Trump entrar batendo em todo mundo e anunciar logo no primeiro dia que a tarifa para os produtos chineses será de 25% e para o Canadá, 10%, eu acredito que deverá haver uma alta imediata da inflação, já em 2025. Isso, obviamente, é uma má notícia para a economia global, porque vai impactar a expectativa de Fed (Federal Reserve, banco central americano) e vai levar a curva dos juros americanos para cima. Aí, o Trump vai contratar mesmo uma desaceleração da economia para 2026. Alguns economistas estão dizendo até que, dependendo do tamanho da desaceleração e da eventual reação do Fed, poderá haver inclusive uma recessão em 2026 nos Estados Unidos. É um cenário bastante especulativo, mas é possível.
Por isso, eles até acreditam que o Fed, num primeiro momento, não vai reagir muito a uma alta tarifária, porque vai entender que essa desaceleração da economia poderá ocorrer de forma mais ou menos natural. Todo mundo lembra de que, em 2017/2018, o Fed cortou os juros, mesmo com todas aquelas medidas tarifárias adotadas pelo governo Trump. Antes da pandemia, o Fed estava diminuindo os juros, porque teve uma desaceleração da economia em função desse processo de alta tarifária. Aí, com a pandemia, a taxa dos Fed Funds (empréstimos overnight entre bancos e outras instituições financeiras) foi para zero de novo. Acho que é uma maneira de tentar avaliar qual poderá ser o impacto dessas medidas na economia americana e seus efeitos na economia global, se o Trump chegar forte com essa questão tarifária. Agora, se ele fizer, por exemplo, um acordo com o Canadá e com México, mas aplicar uma tarifa mais alta na China, acho difícil que isso tenha um grande impacto na economia americana.
A economia americana é um Titanic. Para você movimentar um Titanic, tem de haver choques grandes
O sr. acredita, então, que, se o aumento de tarifas sobre produtos chineses for uma medida isolada, o efeito na economia americana e por tabela no mundo será relativamente pequeno?
A gente tem de lembrar de que a economia americana é um Titanic. Para você movimentar um Titanic, tem de haver choques grandes. Se houver um monte de coisinha pequena, focada em alguns países, e não uma coisa sistêmica, com a elevação de todas as tarifas para 20%, por exemplo, acho difícil que haja um grande impacto sobre a macroeconomia americana. Se for uma coisa aqui e acolá, sobe um pouco a tarifa da China, não faz nada com o Canadá, faz mais algum negócio na Europa, ou seja, se for essa coisa mais dilatada e diluída, acho difícil que tenha um efeito significativo. Isso não quer dizer que não haverá um impacto muito negativo naquele país que, infelizmente, acabar sofrendo uma alta de tarifas sobre suas exportações para os Estados Unidos.
Além dessa questão tarifária, o Trump falou muito ao longo da campanha de estimular as empresas americanas a produzir nos Estados Unidos, a trazer para o país a produção que hoje está pulverizada em vários países, por meio das cadeias globais de suprimentos. Como o sr. vê essa questão?
A gente tem de olhar essa questão de decoupling muito setorialmente. Como eu falei há pouco, há setores em que diferentes governos olham questões estratégicas, dentro de uma lógica maior, não somente econômica, nos quais já está ocorrendo um desacoplamento forte – e isso deve continuar. Não vejo isso nem parando onde está nem muito menos se revertendo. Eu não acredito, levando em conta toda essa visão do Trump, do J.D. Vance (novo vice-presidente americano), de que houve um erro estratégico na maneira pelo qual os Estados Unidos permitiram a entrada da China na economia global e a absorção de uma parte relevante do seu setor de manufaturados pela Ásia como um todo, que eles queiram reverter isso. Essa estratégia danificou muito uma camada da população que não tinha outra opção e privilegiou uma elite costeira ligada a tecnologia e finanças.
Agora, eu acredito que eles não estão muito preocupados com a importação de produtos de baixo valor agregado. Se é mais barato fazer brinquedo na China, por exemplo, não tem muita razão para os Estados Unidos não continuarem a importar brinquedo da China. O que eles querem é trazer a indústria de chip de volta. Eles querem produzir nos Estados Unidos coisas que têm maior valor agregado e mais conteúdo tecnológico. Isso casa um pouco com aquela questão militar, geopolítica, que eu comentei. Obviamente, se o Xi decidir invadir o Taiwan, esse jogo vai mudar radicalmente. Não sei se ele vai invadir o Taiwan nos próximos anos, mas é um risco óbvio. Agora, se ficar tudo como está nesse campo, se não houver nenhuma nova guerra, alguma coisa do tipo, acho que esse processo de desacoplamento vai continuar, mas não vejo como sendo algo necessariamente disruptivo. Eu acho que ele vai acelerar tendências já existentes.
A razão principal pela qual o dólar tem se valorizado em relação às principais moedas são as virtudes da economia americana
Em sua visão, como a questão cambial entra nesta equação?
Trazendo de volta a conversa do Scott Bessent, ele tem dito que uma coisa que tem de ser negociada conjuntamente é a queda do dólar, porque acredita que o dólar está supervalorizado. E, de fato, o dólar está num patamar historicamente elevado. Então, parte do que o Bessent falou foi que será necessário fazer algum tipo de acordo entre as principais economias do mundo, para tentar baixar o valor do dólar, como foi feito em 1985 no Acordo Plaza, em Nova York, com a Alemanha, Japão, França e Reino Unido. Na época, o acordo acabou funcionando e houve uma grande queda do dólar.
Eu não sei se ele vai conseguir amarrar tudo isso num processo um pouco mais estruturado, porque naquela ocasião o mundo era muito mais simples. Naquele momento, o Acordo Plaza foi firmado no âmbito do G-7 e agora já tem o G-20. Está muito mais complicado fazer algo do gênero, tem muito mais economia envolvida. Hoje, de qualquer forma, a grande questão é a China. A moeda chinesa tem desvalorizado muito nos últimos tempos, não somente em função das virtudes da economia americana, mas principalmente em decorrência dos problemas domésticos da própria China. É essa divergência de performance econômica entre os Estados Unidos e a China que está impactando muito a taxa de câmbio. E o Scott Bessent tem dito que gostaria de ver até essa questão tarifária sendo parte de uma negociação mais ampla, que inclua a discussão sobre o que fazer para diminuir a pressão em cima do dólar. É uma questão mais complicada, porque a razão principal pela qual o dólar tem se valorizado em relação às principais moedas são as virtudes da economia americana: inteligência artificial, tecnologia etc. Mas, de qualquer forma, é algo que deve estar no radar de todo mundo neste início de governo Trump.
Que efeito isso tudo deve ter sobre o comércio internacional? Isso vai acelerar a desglobalização que já vem ocorrendo nos últimos anos?
Eu não vejo necessariamente o governo Trump como sendo uma novidade neste sentido. Obviamente, o governo Trump, com a orientação que tem, deverá aprofundar esse processo. Mas não dá para colocar essa questão só em cima da eleição do Trump. Essa tendência já tem mais de uma década. Para mim, a desglobalização começou em 2008. Só que, em 2008, o que houve foi uma desglobalização financeira, que levou a uma queda significativa no fluxo de capitais entre regiões e países. Em função da crise de 2008, houve também uma grande recessão, que aprofundou esse processo na área comercial. O comércio global cresceu muito acima do PIB (Produto Interno Bruto Mundial) durante décadas, mas começou a perder tração naquele período.
Depois, você teve a questão tarifária no primeiro mandato do Trump e a pandemia, que reforçaram esse movimento. O governo Xi também deu a sua contribuição para isso, quando começou a maltratar as multinacionais. Aí, veio a guerra na Ucrânia e a adoção de medidas restritivas contra a Rússia. Houve também o uso do dólar como uma forma de punir países não amigáveis, como a própria Rússia, o Irã e outros, que ampliou a desglobalização no campo financeiro, e toda a discussão em torno da moeda do Brics, que o Trump já disse que vai retaliar, caso essa proposta avance. Então, tudo isso já está acontecendo faz tempo. Não é uma novidade.
O ambiente de negócios na China piorou muito. Hoje, não tem muita gente falando ‘ah, eu quero estar na China’
Agora, essa visão do Trump de querer aumentar a produção de manufaturados nos Estados Unidos, estimulando o retorno de fábricas de empresas americanas instaladas no exterior, não vai dar um impulso extra na desglobalização?
Como eu disse, esse descolamento já começou de certa maneira no primeiro mandato do Trump, em 2017/2018. Então, as empresas já se ajustaram. Isso aumentou muito com a pandemia também, em cima da ideia de não ter cadeias de suprimentos tão frágeis. As empresas já vêm fazendo muito reshoring (volta da produção para os Estados Unidos). Não é o governo que está forçando as empresas a fazer isso. As empresas mesmo perceberam que estavam muito expostas. Viram que o sistema era muito eficiente, mas muito frágil, tanto do ponto de vista de choques exógenos, como a pandemia, como de choques políticos. Quando a gente conversa com as empresas que têm negócios na China, elas dizem que está muito difícil trabalhar lá. O ambiente de negócios na China piorou muito. Hoje, não tem muita gente falando “ah, eu quero estar na China, a China é um lugar brilhante para fazer negócios, está superfácil ganhar dinheiro lá, trabalhar lá”. Esse momento passou.
As empresas também estão dizendo, “pô, nós não podemos ficar mais totalmente dependentes de uma China que está numa concorrência geopolítica com os Estados Unidos e não está nos tratando muito bem”. Eles ferraram, por exemplo, todas as montadoras. Todas as montadoras, que apostaram muito na China, se ferraram, porque eles pegaram toda a tecnologia, copiaram tudo e construíram uma indústria local. Agora, a Volkswagen não está vendendo mais carro lá. A Fiat não está vendendo mais carro lá. Então, de novo, eu acho que nada disso é novidade. Esse é um processo que já vem ocorrendo há anos.
Como todo esse cenário deve impactar os mercados?
A gente vive um momento nos mercados globais de uma aguda excepcionalidade da economia americana. Quando você compara a Bolsa americana hoje com outras Bolsas no mundo, ela parece muito cara. E as Bolsas globais, as europeias, a chinesa, a brasileira, baratas. Só em 2024, a Bolsa americana subiu mais de 30%, mas de outro lado tem a economia que mais bomba no mundo. Essa diferença de precificação das ações americanas e de outros países tem lastro. Não é uma coisa inventada, uma bolha, algo que você pode olhar e falar “isso é um exagero”. Não é uma coisa insustentável, resultado de uma bolha de crédito, por exemplo, como aconteceu antes da crise financeira de 2008, quando havia uma bolha imobiliária e diziam que aquilo iria explodir. Não dá para olhar para economia americana hoje e dizer “isso é uma bolha gigantesca que vai explodir”.
Você pode até questionar a precificação das ações do setor de tecnologia, em função de inteligência artificial, se está exagerada ou não, mas não há uma instabilidade financeira evidente. Por isso, é difícil, num primeiro momento, dizer “está na hora de vender Estados Unidos e comprar o resto do mundo”, sem saber exatamente o que o Trump vai fazer. A única coisa que eu diria que pode reforçar essa questão de “eu vendo Estados Unidos e compro o resto do mundo” é o Trump chegar pesado com um aumento de tarifas, dando um choque sistêmico. Aí, sim, eu apostaria numa desaceleração da economia americana ao longo do tempo. Isso é uma coisa que poderia derrubar a Bolsa americana em relação às outras bolsas, independentemente de também “espirrar” em outros países. Poderia tirar um pouquinho desse fôlego forte da economia americana. Mas aí eu acho que vai depender muito de qual será a trajetória de crescimento econômico no governo Trump, das medidas de desregulação que virão daquele pessoal do Elon Musk, do tal do Doge (Departamento de eficiência Governamental). Se houver uma pancada de desregulação, mais estímulo fiscal, a economia americana pode até acelerar.
Quando a economia americana está bombando, a paciência dos investidores com essa falta de compromisso com a questão fiscal existente hoje no Brasil diminui muito
No caso do Brasil, como essas coisas todas podem afetar a Bolsa?
Sinceramente, você acha que eu vou “vender” Estados Unidos para “comprar” Brasil, com essa zona que a gente está vendo hoje no País? Eu, não. Vou ficar comprado nos Estados Unidos. Na minha carteira, tenho S&P 500 (índice que reúne as 500 empresas americanas mais valorizadas na Bolsa) e bitcoin. E só.
Para a gente concluir, em termos de exportações, impacto na economia real, eventuais respingos inflacionários e essa questão do dólar que o sr. levantou, como é que isso pode afetar o Brasil?
Como eu disse, eu acho que os Estados Unidos estão funcionando como um imã de recursos. Não vejo isso mudando no curto prazo, até 2026, no cenário que estou tentando traçar. O que é mais claro e imediato é a continuidade dessa excepcionalidade americana. Isso coloca todo o resto numa fragilidade muito maior. Quando a economia americana está bombando, a paciência dos investidores, globais e locais, com essa falta de compromisso com a questão fiscal que a gente observa hoje no Brasil diminui muito. O País fica muito mais vulnerável.
Numa conjuntura global favorável aos emergentes, que normalmente casa com uma fraqueza dos Estados Unidos, com dólar caindo, como aconteceu, por exemplo, no primeiro mandato do Lula, o mercado fica muito mais paciente, porque há um ambiente positivo para investimentos nos países emergentes. Normalmente, as Bolsas sobem e há uma apreciação do câmbio. Isso também acaba sendo uma coisa positiva para o crescimento nesses países. No primeiro mandato, o Lula aumentou muito os gastos. Só que a economia estava bombando e havia dinheiro para pagar as contas. Ele conseguiu, apesar de ter aumentado muito os gastos, sustentar o superávit primário. Então, em 2005, ninguém estava cobrando dele um mega ajuste fiscal. Agora, no cenário atual, que é exatamente o contrário de 2005, as pessoas olham e falam “cara, você tem de viver dentro desse limite fiscal. Se não, tchau”.