Brasil tem menos calouros em Engenharias do que há dez anos e maioria entra em cursos EAD

Graduações a distância viram opção mais acessível, mas especialistas se preocupam com a garantia de experiências práticas e qualidade da oferta; governo prepara novas regras para a modalidade

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Foto do author Isabela Moya
Atualização:

Em dez anos, o Brasil viu diminuir em 23% o total de calouros nas Engenharias, que prepara profissionais para áreas cruciais no desenvolvimento do País, como transição energética e uso da inteligência artificial. Em 2014, eram 469,4 mil ingressantes em graduações da área, número que caiu para 358,4 mil em 2023, último ano com dados disponíveis.

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Entre os motivos para o baixo interesse está a dificuldade em Matemática e a dificuldade de tornar as aulas mais conectadas com a vida real. Especialistas veem o risco de apagão de profissionais em alguns setores.

Além de menor quantidade, o perfil mudou - são cada vez mais cursos a distância (EAD). Em 2014, era de 5,9% a fração de ingressantes na modalidade - e saltou para 54% após uma década. Em 2023, pela primeira vez, o EAD superou o presencial - o Ministério da Educação (MEC) prepara novas regras para as graduações remotas.

Nesta semana, os estudantes que fizeram do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) estão escolhendo seus cursos no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), plataforma que reúne as vagas em universidades públicas.

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Em 2023, número de calouros em cursos de Engenharia a distância superou o total de ingressantes em graduações presenciais pela primeira vez Foto: Adobe Stock

Diferentemente de cursos como Direito ou Medicina, um engenheiro pode se formar quase totalmente a distância. A exigência é de 10% da carga horária em atividades de extensão (nos polos ou em campo) e avaliações presenciais, além do estágio.

O EAD, que abrange cursos com grade curricular de 41% a 100% a distância, ganhou força após a flexibilização de regras para abrir graduações em 2017, e a pandemia, que fez os alunos experimentarem aulas remotas.

É opção mais barata e acessível, principalmente para quem mora em áreas distantes, mas sofre questionamentos sobre sua qualidade. O Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) defende uma cota mínima de classes presenciais (leia mais abaixo).

Os motivos para escolher Engenharia a distância não diferem do que é visto em outras áreas: flexibilidade de horários, comodidade, preço mais baixo e chance de conciliar com o trabalho.

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É o caso de Millena Silva, do 9º semestre de Engenharia Ambiental. Ela saiu de Pindamonhangaba (SP) para estudar na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul, em 2019. No 2º ano da graduação, o coronavírus impôs aulas remotas.

Em 2022, na volta do presencial, Milena não retornou por questões financeiras - viver em outro Estado era caro e ela conseguiu trabalho na cidade natal -, além de ter se adaptado ao ensino remoto. Pediu transferência para uma faculdade particular a distância.

“O que sinto falta é que no presencial tinha bastante contato com laboratórios”, diz ela, de 26 anos. “Para mim, que já tive experiência no laboratório e nas visitas em campo, foi mais tranquilo o EAD. Mas para quem tem o primeiro contato a distância é mais complicado.”

A jovem afirma também que o estágio ajuda a ter contato com a prática. Mesmo assim, não recomenda entrar direto no remoto. “Tem de ser focado no que quer para estudar a distância, gerenciar a rotina”, continua.

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Quem escolhe o EAD?

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Acima dos 30 anos, casados, que já trabalham e com renda familiar de até 3 salários mínimos - este é o perfil dos alunos da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), instituição pública EAD. Nas faculdades presenciais, a maioria é mais jovem, entra sem emprego, e tem renda maior.

A Univesp tem Engenharias de Computação e de Produção. As aulas são assíncronas (gravadas, para assistir quando puder), mas as avaliações são presenciais. Há seis disciplinas de extensão acadêmica, que devem ser presenciais em campo por meio de projetos com a comunidade, para ter experiência prática.

Para o engenheiro Marcos Borges, presidente da Univesp, a inclusão é uma vantagem: alunos de diferentes regiões do Estado, incluindo cidades com poucos habitantes, onde não há outras faculdades. “A gente consegue com EAD criar riqueza na cidade. Vai formar engenheiro lá (em cidades pequenas)”, diz.

Estamos em 370 municípios (paulistas) - desses, 220 não têm faculdade presencial. Ou eles estudam EAD ou não estudam em nível superior. Isso em São Paulo, um Estado super-rico.

Marcos Borges, presidente da Univesp

O MEC estima que em 2024 o total de matriculados no EAD em todas graduações supere o de alunos do presencial. Para as engenharias, essa transformação leva mais tempo, por ser um curso mais longo.

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O governo, porém, diz que vai propor em breve um novo marco regulatório: “referenciais de qualidade, decreto, portarias e instrumentos de avaliação que, certamente, provocarão alterações das regras de oferta de todos os cursos de graduação a distância, não só para os de Engenharia”, segundo a pasta.

O Conselho de Engenharia e Agronomia é contrário à formação 100% online. “O ensino remoto permite a democratização do ensino, mas dentro disso há a preocupação com a qualidade e a capacidade do profissional”, diz Vinicius Marchese, presidente da entidade. “São profissões que incorrem em risco à vida.” Para o Confea, o ensino híbrido - combinação do remoto com o presencial - é boa alternativa.

Já na visão do presidente da Univesp, uma cota obrigatória de aulas presenciais é inviável para parte da população”, como a “mãe solo que não tem com quem deixar a criança, o aluno surdo que precisa do Libras, o aluno cego que precisa da legenda, o aluno que tem autismo e se sente desconfortável no meio de muita gente”. Para ele, a mudança nessa direção “tira o sonho de milhares”.

“Tem EAD bom e ruim, assim como presencial bom e ruim”, afirma Borges. “O MEC tem de atuar para evitar abusos de cursos que não têm a menor qualidade, que não ensinam nada. Mas isso não é específico do EAD nem mesmo do EAD privado. É de faculdades não sérias”.

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E por que há menos jovens interessados na área?

Segundo a professora da Escola Politécnica da USP Roseli Lopes, a queda de interesse pelas Engenharias é fenômeno global, que ocorre pelo fato de ser um curso considerado difícil, com duração de ao menos cinco anos. E hoje há oferta grande de outras possibilidades com inserção mais rápida no mercado de trabalho.

“A certificação de Engenharia tem o objetivo de formar profissionais com maior grau de responsabilidade que vão, inclusive, coordenar equipes de pessoas com formação técnica”, diz ela, diretora da Associação Brasileira de Ensino de Engenharia (Abenge).

Para reverter esse desinteresse, o Confea quer atualizar a grade curricular para tornar os cursos mais atrativos. A ideia é incluir mais disciplinas práticas e promover interdisciplinaridade por meio da interação não só entre Engenharias, como também outras profissões, como as da Saúde.

“Os cursos não podem ser chatos, onde o jovem de hoje, a geração Z, fica três ou quatros anos estudando teoria, para enxergar onde vai aplicar na prática”, diz o presidente do conselho.

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“É preciso trazer problemas da vida real, com impacto nas comunidades; aproximação maior com a indústria, em projetos de inovação nas empresas; ensinar habilidades sociais e incentivar o trabalho em equipe”, acrescenta Roseli.

TechLab do Insper é um espaço usado pelo curso de Engenharia voltado para a indústria 4.0, conceito de produção que engloba novas tecnologias .Atividades práticas são vistas, por alguns especialistas, como essenciais para a formação Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Coordenador das engenharias Química e de Materiais da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Renato Meneghetti defende também mais projetos de extensão universitária. Ressalta ainda que a “aprendizagem passiva”, sem “mão na massa”, contribui para a evasão.

Outro fator que afasta os jovens é a defasagem em Matemática, especialmente após a pandemia. O Brasil é um dos países com piores índices de aprendizado na disciplina.

Muitas faculdades fazem reforço das matérias básicas para recuperar a aprendizagem e nivelar os calouros. “Se não toma medida nesse aspecto, o estudante com déficit reprova, reprova, e se transforma em evasão”, afirma Meneghetti, que diz ver lacunas até de alunos vindos de “bons colégios”.

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Na Univesp, a disciplina de Cálculo não é dada no 1º semestre. No lugar, há revisão dos conteúdos de Matemática de nível de ensino médio.

Somada à baixa de recém-formados, há migração de engenheiros para outras áreas, como o mercado financeiro, onde há maior remuneração.

“Corre o risco de ter apagão profissional. Temos uma agenda de sustentabilidade, de energias renováveis, eletrificação, que passa pelas áreas de engenharia. E colocamos cada vez menos profissionais novos no mercado”, completa Meneghetti.

Desde 2014, houve queda no interesse pelas Engenharias, que teve leve recuperação só em 2022. Especialistas afirmam que disciplinas mais práticas podem elevar interesse dos jovens na área e reduzir evasão Foto: Gastão Guedes/Fatec