Em 1999, o empresário José Mindlin anunciou a doação para a USP da Brasiliana, a mais importante biblioteca privada do País, avaliada por baixo em R$ 135 milhões. Doze anos depois, o prédio que abrigará os 40 mil volumes na Cidade Universitária ainda está em fase final de obras. Mindlin morreu no ano passado, aos 95, sem ver seu sonho realizado.O caso ilustra as dificuldades que universidades enfrentam para receber doações. Até nas particulares, menos sujeitas a restrições legais, burocracia excessiva, impostos altos e mesmo questões culturais são apontados como obstáculos.A USP, aliás, está no centro do debate sobre a relação entre ensino e iniciativa privada. No ano passado, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco foi palco de polêmica por conta do batismo de salas de aula com nomes de doadores, medida depois revogada. Agora as atenções se voltam para a Escola Politécnica, que criou o primeiro endowment do ensino público brasileiro.Comum no exterior, o endowment, mais que doação, é uma dotação. Uma pessoa ou empresa repassa dinheiro à universidade com a condição de que seja aplicado no mercado financeiro, para gerar rendimentos contínuos. A ideia é pensar a longo prazo, evitando usar o principal para medidas pontuais, como cobrir déficits.A meta da Poli é, até o fim de 2012, arrecadar R$ 25 milhões, o que permitiria a retirada anual de R$ 1,5 milhão. E, em uma década, bater os R$ 150 milhões de patrimônio, com resgate anual de R$ 9 milhões. O dinheiro servirá, entre outras coisas, para melhorias de infraestrutura e financiamento de projetos de pesquisa.A doação inaugural, de R$ 100 mil, saiu do Grêmio Politécnico, que representa os alunos. “A gente não estuda de graça, mas com dinheiro da população. Nada mais justo que quem estuda ou já estudou na Poli retribua tudo o que conseguiu por causa da formação”, diz a presidente do grêmio, Danielle Gazarini, de 22, do 3.º ano de Engenharia Civil.Além de alunos, ex-alunos e professores, o fundo quer atrair empresas. Para isso, os gestores aguardam a obtenção do título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), que permite deduzir doações do Imposto de Renda. Dono da Método Engenharia, Hugo Marques da Rosa só espera a concessão do status de Oscip para fazer sua doação. Para ele, a transparência na gestão é o ponto forte do projeto. “Tenho medo de como no Brasil o setor público administra as verbas.”Doadores terão assento no conselho do fundo, mas a palavra final ficará com a faculdade. “A Poli continuará decidindo onde empregar os recursos como faz hoje, no colegiado que aprova o orçamento”, diz Felipe Sotto-Maior, de 27, diretor da empresa Endowments do Brasil, responsável pelo projeto.No exterior, esse método de captação de recursos existe há séculos. Fundos sustentam a elite do ensino nos Estados Unidos. Dos US$ 3,7 bilhões do orçamento de Harvard em 2010, por exemplo, 35% vieram de aplicações financeiras. A USP, por sua vez, não tem um controle centralizado da receita obtida com doações. Depende basicamente do Tesouro paulista – que lhe repassou R$ 3,3 bilhões no ano passado.Para Danielle, projetos como o da Poli deveriam se multiplicar. Ela reclama do “preconceito” que envolve a questão. “Não existe isso de virar refém da iniciativa privada.”O diretor do Diretório Central dos Estudantes Thiago Aguiar, de 22, discorda. Aluno de Ciências Sociais, acha que a experiência da Poli “obscurece” questões mais profundas, sobre financiamento da educação e acesso à universidade. “Julgar o endowment a salvação da educação pública é enganação, desestimula estudantes e professores a reivindicar do Estado que cumpra suas funções”, diz. “Falar em cultura de retribuição envolve uma dimensão moral que não pode ser normatizada.”A relação entre capital privado e universidades também é alvo de críticas entre docentes. Para o professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) Luiz Renato Martins, doações implicam contrapartidas “viciosas”. “Seja pela concessão de espaço publicitário ou uso privado de prédios, seja pelo direcionamento do curso e das atividades didáticas no sentido que interessa ao doador.”PlacasMartins considera o episódio da São Francisco “pedagógico”. Tudo começou quando o então diretor da unidade, João Grandino Rodas, atual reitor da USP, atraiu doações da ordem de R$ 2 milhões para a reforma de duas salas de aula e de banheiros. As contribuições partiram do escritório Pinheiro Neto Advogados e dos herdeiros de um ex-aluno, o banqueiro Pedro Conde.Após as obras, seriam afixadas placas nas portas das salas com nomes dos doadores, compromisso assumido pelo diretor. Alegando que não tinham sido informados do acordo, alunos e docentes se mobilizaram para revogar a portaria.As placas não estão lá, mas as feridas continuam abertas. Filho do banqueiro, Pedro Conde Filho move ação para receber de volta R$ 1,1 milhão aplicado em reformas. Em abril, Rodas criticou a medida e disse que o “modo jacobino” como a ação foi movida pode afugentar outros doadores.Para Sotto-Maior, ex-aluno das Arcadas, o caso serviu de aprendizado. “A captação foi um sucesso, mas houve erros no processo. E talvez o batismo das salas não fosse a melhor retribuição aos doadores.”“A Poli vai conseguir muitas doações”, aposta o professor da Faculdade de Medicina da USP Miguel Srougi. Ele é responsável por iniciativas de captação de recursos que beneficiaram a faculdade e pacientes do Hospital das Clínicas, como a reforma de um ambulatório com R$ 2,7 milhões doados por Aloysio de Andrade Faria, ex-dono do Banco Real. Com outros 13 empresários, levantou cerca de R$ 3 milhões para ampliar a Casa do Estudante, onde moram 52 alunos.Hoje o professor gerencia US$ 1 milhão doado por João Alves de Queiroz Filho, dono da Hypermarcas. Entre seus planos está a construção de dois anfiteatros no HC e o envio de 34 integrantes da faculdade ao exterior com a missão de trazer ideias que possam ser replicadas na USP. A Fundação Faculdade de Medicina recebeu uma das bolsas e pretende mandar alguém a Harvard estudar os endowments.LeisEspecialista em direito administrativo, Luiz Armando Badin ajudou a montar a estrutura jurídica do endowment feito pelo presidente do Conselho de Administração do Grupo Abril, Roberto Civita, para a ESPM criar a pós em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, iniciada em março. Para Badin, a falta de legislação específica é um dos fatores que afugentam interessados em doar para universidades públicas.“No âmbito privado, há inúmeras dificuldades, mas elas são superáveis”, diz. “No público você não tem clareza de como evitar, por exemplo, conflito de interesse: mesmo o financiamento de pesquisas pode atender ao interesse particular, da indústria. A colaboração é possível, desde que haja um regime jurídico mais definido.”De pertoO ex-reitor da USP Jacques Marcovitch vê no projeto da Poli um exemplo da “forte disposição” de mudar a cultura da doação no País, mas também acha prejudicial a falta de legislação. Ele viveu o problema de perto: assinou com Mindlin o protocolo para transferência da Brasiliana.No início, o doador pensou em criar uma fundação para receber o acervo, mas recuou por causa dos impostos. Em 2002, a universidade retomou a questão. A saída foi criar um contrato de doação em que a USP se comprometia a construir a estrutura para abrigar os livros, só que o acordo mesmo só foi assinado em 2006. “A história de meu pai é exemplo de que não é fácil fazer doação no Brasil”, diz Diana Mindlin, de 67.Leque variadoEmbora mais fácil, a negociação de parcerias em instituições privadas também esbarre na questão cultural e na tributária. Na falta de incentivos – as isenções nos EUA podem chegar a 40% do valor do imposto sobre heranças –, a FGV busca alternativas para atrair doações. “Só parceiros podem fazer ações promocionais para nossos alunos”, exemplifica a professora Zilla Bendit, assessora de Desenvolvimento Institucional da FGV.Entre as diretrizes está a de que o doador pode dirigir a destinação dos recursos, mas a partir de projetos definidos pela escola. “Só aceitamos dinheiro para fim determinado: infraestrutura, atividades acadêmicas ou fundo de bolsas.” Pessoas jurídicas podem instalar painéis, por tempo proporcional ao valor doado. Recursos de pessoas físicas vão para o fundo de bolsas. “Hoje, 22% dos alunos da graduação são bolsistas.”MobilizaçãoEx-aluna do Insper, Clara Roorda, de 26, fez estágio na London School of Economics e ficou impressionada com a importância dada às parcerias. Resolveu ajudar a antiga faculdade a criar o fundo de bolsas, cuja meta é captar R$ 700 mil por ano. “Leva umas três reuniões para você provar que a doação dará resultado, o pessoal ainda é cético”, diz. “Mas, por causa da procura de interessados, já estamos marcando reuniões em horários extras.”“Temos programa de parceria com empresas há mais de 10 anos”, diz Tharcisio Souza Santos, diretor da Faculdade de Administração da Faap. Os parceiros podem fazer pequenas alterações físicas na sala, para divulgar marcas. “Acho que não incomoda visualmente.” Para ele, mais que o marketing, interessa aos parceiros estar perto de um “público qualificado” – segundo pesquisa da Faap, mais de 80% dos ex-alunos com 10 anos de formados estão em cargo de direção de empresas.Patrocinador de salas na FGV e no Insper, o Itaú-Unibanco diz apostar na atração de talentos. “Muitos jovens reconhecem nossa preocupação com qualificação e fazem do banco opção de carreira”, diz Marcelo Orticelli, responsável pela área de Recursos Humanos.No Insper, as placas de patrocinadores não causam dramas de consciência. “Só com a mensalidade não dá para investir em pesquisa, infraestrutura, remunerar bem professores, ampliar bolsas”, diz a gerente de Relacionamento Institucional, Camila Du Plessis. “Existe no Brasil a noção de que só merecem recursos instituições mal administradas, caindo aos pedaços. Precisa ter band-aid na parede. Quando entram aqui e veem a estrutura excelente, as pessoas se impressionam.”