A Agenda 2030 afirma em suas premissas que "não pode haver desenvolvimento sustentável sem paz, nem paz sem desenvolvimento sustentável." Por isso, para encerrar a Série Especial A Criança e o Adolescente nos ODS, vamos tratar do ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes).
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São cinco as metas do ODS 16 que impactam as crianças e os adolescentes. A Meta 16.1 trata de reduzir, significativamente, todas as formas de violência e as taxas de mortalidade relacionadas a isto, em todos os lugares.
A Meta 16.2 propõe a eliminação de abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças. A 16.3 trata de promover o Estado de Direito a nível nacional e internacional e garantir a igualdade de acesso à justiça, para todos.
A garantia à tomada de decisões ágil, inclusiva, participativa e representativa a todos os níveis aparece na Meta 16.7. Na Meta 16.9, a proposta é fortalecer a identidade legal para todos, incluindo o registro de nascimento, até 2030.
Conforme abordado em publicação da Fundação Abrinq, num contexto global de guerras civis, conflitos armados, violações de direitos promovidas pelo próprio Estado e restrição de liberdades fundamentais dos indivíduos em diversos países, além de uma consequente descrença nas instituições públicas, torna-se uma tarefa árdua construir sociedades mais pacíficas, justas e inclusivas em todos os níveis.
Em 2015, de acordo com o Ministério da Saúde, 10.956 crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos no país.O número chama atenção, em relação ao total de 59.080 óbitos por homicídio no mesmo ano.
Para refletir sobre esses indicadores, conversei com a administradora executiva Heloisa Oliveira e com a líder de Políticas Públicas Maitê Gauto, ambas da Fundação Abrinq, instituição parceira na elaboração da série. Confira trechos da conversa:
Como o ODS 16 se relaciona com os demais objetivos, na infância e juventude?
Heloisa Oliveira: Todos os temas que abordamos até agora na série integram a pobreza multidimensional. A violência não é considerada uma dimensão da pobreza, mas está muito relacionada. Quando observamos o perfil das vítimas da violência, identificamos que são, na sua maioria, pessoas que integram os grupos vulneráveis, seja por questões de pobreza, gênero, raça ou outro fator social.
Há uma forte relação entre a pobreza e a exposição e a vulnerabilidade à violência. É aí que cabe a reflexão de como tratar a violência no contexto da Agenda 2030 e das políticas públicas brasileiras.
Uma questão muito relevante é o entendimento simplista de que a violência é um problema exclusivamente de segurança pública. A violência é muito mais do que um problema de segurança pública. É um problema social amplo e está interligado a outras vulnerabilidades sociais.
Como podemos avaliar a questão da violência no Brasil?
Heloisa Oliveira: Você só vai controlar a violência quando houver investimento em políticas públicas preventivas e estruturantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) qualifica que, acima de 10 homicídios por 100 mil habitantes, a violência já é considerada epidêmica. É considerada uma doença da sociedade.
Assim como qualquer doença, a violência precisa ser tratada, com medidas preventivas, de contenção e todas outras medidas que devem estar associadas. É uma questão de saúde pública, acima de tudo. Essa abordagem permite se olhar para além do fato já consumado e trabalhar a prevenção.
Em uma comunidade em que há uma explosão de violência, é preciso identificar as causas, quem está envolvido, quem está mais vulnerável e atuar de forma sistêmica no enfrentamento dessa violência.
Como, geralmente, são os espaços mais violentos?
Heloisa Oliveira: Geralmente há a ausência de mecanismos preventivos, como escolas, espaços culturais e esportivos, que garantam que as crianças, adolescentes e jovens estejam protegidos de maior exposição à violência.
Tudo o que ouvimos hoje em termos de propostas para o enfrentamento da violência vai em uma linha de policiamento, repressão e encarceramento, ignorando os fatores sociais que envolvem a violência. Enquanto não ampliarmos o olhar para tratar do assunto, não conseguiremos tratar os outros fatores sociais propulsores da violência de forma adequada.
Como tratar esses fatores sociais?
Heloisa Oliveira: Quando falamos de adolescência, observamos que há poucas políticas públicas estruturantes voltadas para essa faixa etária. As políticas existentes, que são específicas para essa faixa etária, em geral são voltadas para aqueles que já são considerados como um problema para a sociedade.
No Brasil, temos a Lei de Aprendizagem, mas faltam outras políticas efetivas para investir no futuro e no projeto de vida desses adolescentes. Há um grande risco se não consideramos que essas pessoas são detentoras do potencial de futuro do país. São os adultos da próxima geração.
Não temos, nas políticas sociais brasileiras, uma visão de investimento contínuo para cada fase da vida do cidadão. Hoje percebemos todo um esforço de proteção e investimentos na primeira infância, o que é extremamente importante. Mas falta ainda uma percepção da necessidade na continuidade desses investimentos para as etapas seguintes da vida. Os adolescentes precisam de investimento público, para que desenvolvam todo seu potencial.
Maitê Gauto: Precisamos refletir sobre como construímos a autonomia dessas crianças e adolescentes quando ofertamos a eles uma educação pública de péssima qualidade e que não melhora a sua inserção no mercado de trabalho e sua qualidade de vida? O mercado de trabalho é cada vez mais qualificado e depende de conhecimento em tecnologia e idiomas, que a educação pública hoje não dá conta de oferecer.
E o resultado disso é a reprodução de ciclos de pobreza. Você não atua na prevenção do envolvimento com a violência, nas questões sociais. Por outro lado, há políticas absolutamente repressivas, que não olham essas pessoas como alguém em situação de vulnerabilidade.
Essas pessoas não são reconhecidas como cidadãs e passam de invisíveis para agressoras em uma rapidez surpreendente. Junto a isso, temos a lógica de encarceramento como solução para a violência, mas já se sabe que não resolve, pois aumentamos a população carcerária, mas não diminuímos a violência.
O nosso sistema de justiça juvenil vem desconsiderando tratados internacionais, dos quais o Brasil voluntariamente assinou, que estabelecem a internação como última medida a ser tomada, em casos de adolescentes em conflito com a lei. Aqui, ela é a primeira.
Entre todos os tipos de atos infracionais cometidos por adolescentes inseridos no sistema socioeducativo, os maiores números ficam para roubo (11.632) e tráfico (6.350), lembrando que o tráfico de drogas é considerado uma das piores formas de trabalho infantil, mas não entendemos esse adolescente como uma vítima de exploração.
O sistema penitenciário está imerso em uma crise de funcionamento e o sistema socioeducativo (internação de adolescentes) não cumpre a sua função de reeducar. É a lógica de funcionamento da mentalidade de punição no Brasil que precisamos rever do ponto de vista de sociedade.
Como poderíamos mudar o nosso olhar em relação aos adolescentes?
Heloisa: Precisamos deixar de tratar somente dos problemas e investir mais no potencial e no desenvolvimento dessa geração de futuros adultos. E, mesmo nos casos em que os problemas acontecem, como por exemplo, o envolvimento com o tráfico de drogas e com a violência, é preciso ter o acompanhamento desse jovem.
Qual é a possibilidade de uma criança ou adolescente vítima de violência se tornar violenta e passar a reproduzir a violência? Ao analisar o caso de um adolescente que cometeu um ato grave, seria muito bom se a gente conseguisse ter uma visão da história desse jovem. Há uma grande chance de que ele tenha sido vítima ou tenha sido negligenciado em um outro momento. Atuar na proteção pode reduzir muito o envolvimento de jovens com a violência.
Apenas a título de ilustrar o que estamos afirmando, de acordo com dados do Ministério da Saúde, em 2014, houve 1785 internações hospitalares de crianças entre 0 e 9 anos de idade por agressão. Na faixa etária de 10 a 14 anos, o índice é de 1437. De 15 a 29, o número sobe para 6067.
Não estamos justificando o fato de um adolescente vir a cometer atos violentos, isso precisa ser tratado com assertividade, o que afirmamos é que é preciso entender a violência para preveni-la e assim tentar reduzir essas estatísticas assustadoras de denúncias e de violência fatal.
Como o Sistema de Garantir de Direitos de Crianças e Adolescentes (SGDCA) pode contribuir nisso?
Heloisa Oliveira: O Estatuto da Criança e do Adolescente criou o Sistema de Garantia de Direitos, que foi regulamentado por uma Resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), com o objetivo de garantir que todo o conjunto de políticas funcione para todas as crianças e os adolescentes. Para os casos de adolescentes que tenham qualquer conflito com a lei, foi aprovada a lei que regulamentou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. É preciso investir mais na implementação desses dois sistemas para que eles funcionem em todo o país e para todos.
É urgente garantir que o Sistema de Garantia de Direitos seja, de fato, uma realidade, com fluxos de atendimento adequados, com informações cadastrais que facilitem a percepção da relação intersetorial entre as diversas dimensões da vida da criança, seja no contexto familiar, na escola, na comunidade ou até mesmo quando ela começa a apresentar sinais de ruptura com as regras sociais. É preciso ter a possibilidade de uma análise mais contextualizada do que acontece com as crianças e adolescentes, para garantir a integridade o projeto de futuro dessa pessoa.
Isso é muito difícil?
Heloisa Oliveira: Acho que não é fácil, mas o caminho pra isso ter a real dimensão desse desafio para que possamos enfrentá-lo. Os instrumentos legais e para a execução das políticas já existem, eles precisam acontecer em todos os territórios e comunidades onde vivem as famílias.
Maitê Gauto: Temos que reconhecer que o tão aclamado Sistema de Garantia de Direitos não tem funcionado como esperado quando foi concebido. E é preciso ter coragem de admitir as falhas do sistema para que possamos discuti-las e construir soluções. Sempre que falo disso, eu me lembro da história do menino Bernardo, que morreu, tendo pedido ajuda diversas vezes e sendo ignorado, por ser um menino de classe média.
Também me lembro do menino Ítalo, morto aos 10 anos pela polícia, quando estava roubando um carro. Ele já havia passado pelo Sistema de Garantia de Direitos várias vezes, pelo Conselho Tutelar e em nenhum momento foi feito um atendimento adequado ou efetivo para esse menino.
No fim ele acabou morto pela polícia, dentro de um carro, porque roubou aos 10 anos de idade. Vivemos em uma sociedade punitiva e em crise civilizatória. Como percebemos, ninguém olha para as trajetórias dos meninos.
Sobre a série
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) fazem parte da Agenda 2030, um plano global composto por 17 objetivos e 169 metas a serem alcançados até 2030, pelos 193 países membros da Organização das Nações Unidas.
Nas semanas anteriores, falamos sobre o objetivo 1 (Erradicação da Pobreza), 3 (Saúde e Bem-Estar) 4 (Educação de Qualidade), 5 (Igualdade de Gênero) e ODS 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico). A série se encerrou hoje, com o post sobre o ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes).
Estudo da Fundação Abrinq
Em 2017, a Fundação Abrinq lançou três estudos da série A Criança e o Adolescente nos ODS, contemplando os indicadores sociais que impactam na vida de crianças e adolescentes, relacionados aos ODS 1 (Erradicação da Pobreza), 2 (Fome Zero e Agricultura Sustentável), 3 (Saúde e Bem estar), 4 (Educação de Qualidade), 5 (Igualdade de Gênero), 6 (Água Potável e Saneamento), 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico), 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis) e 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes).
A série será encerrada em outubro com uma publicação a respeito do ODS 10. Os relatórios completos e mais informações sobre o assunto podem ser encontrados no Observatório da Criança e do Adolescente.
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